Neste início de século, parece não haver dúvidas sobre a consolidação do movimento negro no cenário das lutas sociais do Brasil. Seu combate contra o racismo, chega ao século XXI de modo bastante forte e atuante. Numa demonstração de importância em relação ao conjunto dos movimentos sociais. Graças a isso, a discriminação racial, que é um dos principais problemas estruturais da nação brasileira, ganhou uma ampla visibilidade social. O que, de certa forma, forçou mais uma vez o debate sobre a questão racial no Brasil e a situação subalterna dos negros.
Entretanto, esse avanço não se deu de modo harmônico e consensual internamente. Em muitos momentos o próprio movimento negro demonstra fragilidades em relação à sua unidade. Principalmente sobre a questão que envolve a relação classe/raça. De um lado, existem setores defensores de uma luta anti-racismo desvinculada com a questão de classe, já que para eles, no Brasil o elemento determinante para a situação social de um indivíduo é muito mais racial do que classista. De outro, argumentam que no Brasil, assim como em qualquer outro país capitalista, a situação de classe interfere diretamente nas questões raciais. E neste sentido, a luta anti-racismo deve ser vinculada à luta de classes.
Claro que essas duas posições, que permeiam muitos dos debates internos do movimento negro, não parecem ser simples de solução. Tanto uma quanto a outra, apresentam boas argumentações, com diversos exemplos coerentes e legítimos. Todavia, ao invés de caminharem para uma posição consensual, elas assumem, quase sempre, a forma da polarização-oposição. Demonstrando que classe e raça não são elementos fáceis de conciliação. A pergunta que se pode fazer é: quais são os motivos para a existência dessa polarização interna no movimento negro?
Florestan Fernandes foi um dos principais autores brasileiros a se defrontar com essa questão. Sendo que para ele a união desses dois elementos era fundamental para uma luta eficaz do movimento negro.
Encarregado de fazer um estudo sobre os negros no Brasil para a UNESCO, Florestan, em 1951, passou a pesquisar a relação raça e classe em São Paulo. Nesta ocasião, lançou-se ao confronto da idéia de que no Brasil existia uma “democracia racial”, fundamentada por Gilberto Freire. Para o escritor baiano, a harmonia racial seria a contribuição brasileira para as relações sociais de outros povos.
Por um lado, esse conflito poderia até ser justificado caso os negros da sociedade brasileira estivessem inseridos nas diversas classes sociais de modo equilibrado, sem grandes assimetrias. Pois assim, não haveria como argumentar que o racismo é praticado independentemente da classe social. Isso poderia até acontecer, quer dizer, haver práticas racistas independente da condição de classe dos negros. Talvez, os Estados Unidos seja um bom exemplo disso. Mesmo que a eliminação do fator classe, ainda sim, seja arriscada. Todavia, essa não é a realidade do Brasil. A grande maioria dos negros brasileiros está inserida nas classes subalternas. E isso não é, de maneira alguma, uma novidade. Portanto, como não envolver a classe social na questão do racismo?
Por outro lado, a situação do negro brasileiro foi, por um bom tempo, desmerecida pelo movimento comunista. O próprio Partido Comunista Brasileiro, defendia a tese de que a questão do racismo era uma questão puramente de classe. Tal postura, certamente, acabou distanciando o movimento negro das lutas de cunho classista. Mesmo que em muitos casos essa grande parte da população estivesse inserida na estrutura da classe operária, ela não se sentia representada pelos órgãos comunistas na luta anti-racismo. As privações que o negro sofria eram vistas apenas sob o angulo do interior da fábrica, desconsiderando todo o aspecto repressivo lançado pela cultural racista da sociedade.
De certa maneira, o que acontece nos dias atuais referente à recusa de parte do movimento negro em considerar a questão de classe, assemelha-se ao que o movimento comunista fez tempos antes com a luta do negro. Partindo das reflexões de Florestan, ambos, estiveram ou estão em direções equivocadas.
Para ele, no Brasil classe e raça são dois elementos explosivos e revolucionários e que por isso devem ser unidos. Simbolicamente o 1º de maio dia do trabalho e 20 de novembro dedicado a Zumbi, representam os laços econômicos, morais e políticos que prendem os oprimidos entre si e subordinam todas as suas causas a uma mesma bandeira revolucionária. Assim, os comunistas devem saber que o “preconceito e a discriminação raciais estão presos a uma rede da exploração do homem pelo homem e que o bombardeio da identidade racial é prelúdio ou o requisito da formação de uma população excedente destinada, em massa, ao trabalho sujo e mal pago...” (Florestan, 1989, p.28)
A questão exposta pelo autor, está centrada na idéia de que o operário negro necessita superar dois tipos de ideologias que as classes dominantes do capitalismo criaram. A primeira corresponde à idéia de que o pobre não se torna rico devido tanto à sua vida mundana, quanto à falta de parcimônia com relação aos seus ganhos. A segunda relaciona-se à idéia de que os negros fazem parte de uma raça inferior, não dotada de razão e civilidade, em relação aos brancos. Então o negro operário dos dias atuais carrega nas costas o peso de duas fortes ideologias, produzidas pelo capital, a de que ele é “mundano” e “inferior”.
Assim, os negros possuem uma tarefa dupla, a de desvendar os motivos pelos quais são operários e também pelos quais são submetidos ao racismo pelas elites em geral, mas fundamentalmente a branca. Tais reivindicações fazem parte de um profundo e amplo projeto de nação realmente revolucionário, pois tem como objetivo desmistificar a realidade criada pelas elites do Brasil. Portanto, os negros têm como tarefa “limpar” da nação brasileira parte significativa das formas estranhadas de entender a sua sociabilidade. E neste sentido, um dos primeiros obstáculos a ser superado corresponde à teoria da existência de uma “democracia racial”.
Para Florestan, a desmistificação dessa idéia de convivência pacífica entre as raças no Brasil, deveria ser um dos primeiros passos que o movimento negro deveria dar como forma de fortalecimento. Em seguida, ele deveria construir um movimento de oposição à ideologia dominante, criando assim suas bases político-culturais de combate não apenas ao racismo, mas também ao capitalismo. Na verdade, sua luta deve ser canalizada para a conquista de uma “Segunda Abolição” que parta de baixo para cima, ao contrário da Primeira. Combatendo além da elite branca, também a pequena camada privilegiada negra. Esse pequeno grupo de negros que passou a integrar as camadas médias, que segundo Florestan são os “novos negros”, devem ser combatidos uma vez que, alcançado o conforto da vida burguesa, eles passaram a rejeitar e satanizar o movimento negro perante a sociedade. Tal processo de ida de alguns negros para as classes privilegiadas teve início na década de 1940, aprofundando-se posteriormente. O “novo negro”, na verdade, buscava a igualdade social por meio de um processo pacífico e gradual. Voltando-se para os interesses pequeno-burgueses e prontos a excluir de suas relações os “negros inferiores”. Assim, a luta contra a subordinação do movimento passou a ficar em mãos exclusivas da grande maioria oprimida.
Aqui fica evidente que a chamada “democracia racial” não teve como alvo apenas as classe dominantes, em sua maioria branca, seus propósitos ideológicos também penetraram de modo devastador entre os negros. Em conseqüência, percebe-se o aprisionamento de parte desses indivíduos em certos paradoxos que conduzem à negação de si próprio. Não conseguindo se ver como de fato são vistos pelos brancos.
De modo breve, essas são algumas questões postas por Florestan Fernandes que podem ajudar sobre a questão aqui posta, que é o de ressaltar algumas determinações da relação raça/classe no interior do movimento negro. Mesmo que Florestan tenha feito essas análises no final da década de 1980, suas idéias permanecem instigando e contribuindo para se pensar novas táticas teórico-políticas. De certa forma, suas idéias ainda podem ajudar a entender o papel social e histórico que o movimento negro tem numa sociedade capitalista como a brasileira. Também fornecem elementos que desmistificam a polarização-oposição estrutural entre classe operária/movimentos sociais, deixando clara a existência de equívocos de ambos os lados. Em outras palavras, para o autor, a estrutura da classe operária brasileira é composta não somente pela questão social, mas também pela questão racial, o que concretiza a particularidade da luta de classes no Brasil. E neste sentido, tenta traduzir suas especificidades nacionais em luta radical, buscando a particularidade do processo de inovação social em âmbitos brasileiros.
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Mesmo que o crescimento do movimento negro esteja assentado, fundamentalmente, sobre lutas raciais específicas – ou seja, em equívocos anteriores e bastante caros a ele, graças ao isolamento social provocado – estruturalmente raça e classe no Brasil estão intimamente ligadas.
E as sugestões dadas por Florestan contribuem para se entender os motivos nos quais repousam essa polarização-oposição entre classe/raça presente no interior desse movimento. Primeiro pela recusa dos comunistas em tratarem a questão racial em suas verdadeiras dimensões. Segundo pela “cooptação” de certa parte dos negros ao universo ideológico das elites. Ao que parece, a junção desses dois fatores criaram o que hoje é facilmente percebível nos debates do movimento negro sobre a relação classe/raça.
Portanto, as tarefas desse movimento parecem ser muito mais complexas do que se possa imaginar, à medida que trava uma batalha tanto externa contra as desigualdades sociais e raciais, quanto interna para buscar uma unidade de grupo realmente definido e coeso perante a sociedade. Ao que tudo indica, o solução de uma está intimamente ligada ao caráter da outra. Neste sentido, as formas assumidas pela luta política-ideológica estão ligadas aos rumos teóricos pelos quais a relação raça/classe se desenvolveram.
Por CLAUDIO REIS
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da FFC/Unesp, campus de Marília. Membro do Grupo de Pesquisa Cultura e Política do Mundo do Trabalho
Bibliografia:
FERNANDES, F. Significado do protesto negro . São Paulo, Cortez, 1989.
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