Os direitos humanos são ocidentais e/ou universais? O questionamento é do jurista grego radicado na Inglaterra, Costas Douzinas. Em quatro artigos publicados originalmente no jornal inglês The Guardian, ele debate essa questão. A seguir, os leitores e leitoras conferem o primeiro de seus textos. A genealogia dos direitos Em uma recente entrevista concedida a CiF [Comment is Free], Bob Geldof apontou para um aparente paradoxo presente no âmago dos direitos humanos: os direitos são ocidentais, mas o Ocidente os considera universais. O presidente Obama disse algo parecido em seu discurso de posse. Ele insistiu que os Estados Unidos estão voltando para “valores” e isso lhes permitirá liderar de novo o mundo. Mas os direitos humanos podem ser, ao mesmo tempo, ocidentais e universais? Os direitos humanos são um fato inescapável. A Declaração Universal e os Pactos sobre direitos civis, políticos, sociais e econômicos foram adotados em todo o mundo. Os direitos humanos são a ideologia depois do “fim das ideologias”, os únicos valores depois do “fim da história”. Mas as controvérsias em torno do relativismo cultural, das chamadas guerras humanitárias e da revogação de nossa Lei dos Direitos Humanos indicam que este simples fato não é suficiente. Como observou o filósofo Jacques Maritain, “concordamos quanto aos direitos, contanto que não nos perguntem ‘por quê’. Com o ‘por quê’ começa a controvérsia.” Em vez de compreender as justificativas (e alternativas) subjacentes para os direitos, contudo, um coro forte nos pede para simplesmente agir, aderir, salvar o mundo. Nós repetimos, como um mantra, um número limitado de banalidades e meias verdades tranquilizadoras sobre os direitos, mas não paramos para pensar. Como resultado disso, muitas vezes não conseguimos perceber por que outras pessoas possam discordar de nós. A ação se torna um paliativo para a má consciência. Esse ensaio acompanha brevemente a surpreendente trajetória da lei natural para os direitos naturais e mais tarde humanos, traçando paralelos entre as tradições anteriores e os debates contemporâneos. A primeira referência a “direitos humanos” aparece em escritos jurídicos da década de 1920. Mas seu pedigree remonta à cosmologia grega e à ideia da lei natural. Para os gregos, o universo e cada ser animado e inanimado têm uma natureza singular que determina seu fim ou propósito. Por exemplo, um soldado é virtuoso se ele se empenha em se tornar o soldado mais corajoso, e uma cidade é justa se ela permite que seus cidadãos alcancem a perfeição de acordo com seu propósito singular. A ideia de uma “natureza” racional foi uma invenção revolucionária da filosofia. Ela permitiu que Sócrates e Aristóteles, os sofistas e os estóicos explorassem o que é “certo de acordo com a natureza” usando a razão contra a opinião tradicional e a autoridade ancestral. A “natureza” era a mais refinada e revolucionária das ideias. Como tudo está interligado em um cosmo harmonioso, uma concepção comum do bom e uma ética compartilhada uniam o mundo grego. Nenhum muro separava a moralidade da legalidade. De fato, a mesma palavra (dikaion, jus) designava tanto o estado de coisas legítimo, quanto o moralmente certo ou justo. Os filósofos estóicos transformaram a lei natural em uma razão universal, eterna e absoluta que unificava espiritualmente a humanidade. Seu universalismo filosófico foi de grande ajuda na construção do Império Romano. Para o jurista e político Cícero, a universalidade estóica tinha passado para o jus gentium, o direito do Império Romano, que é “eterno e imutável e vincula todos os povos e todas as épocas”. Esta passagem do universalismo filosófico para o imperialismo globalizado acompanhou infalivelmente o Ocidente desde sempre. Racionalidade clássica e Deus transcendente Com a cristianização do Império Romano, a lei natural clássica se defrontou com prioridades teológicas. Diferentemente das divindades humanóides clássicas, o Deus bíblico é um legislador onipotente. O sofisticado e altamente nuançado direito romano foi gradualmente transformado em um conjunto de mandamentos dados nas Escrituras. Tomás de Aquino fundiu o universo racional clássico com o Deus transcendente do cristianismo. Foi uma combinação crucial, mas precária. Tomás de Aquino sustentava que a razão divina dita à vontade divina, transformando o conflito entre razão e vontade em uma questão de psicologia divina. É Deus que inscreve a lei eterna na ordem natural, mas ele o faz de uma forma racionalmente inteligível. Dizia-se que esta lei natural divina, interpretada pela Igreja, era superior à lei do Estado. Os poderes seculares deveriam ou seguir a lei de Deus, ou abrir mão de sua reivindicação à lealdade dos cidadãos. Ela era uma arma poderosa nas mãos da Igreja. Mas quando se alcançou a superioridade eclesiástica, a lei natural se tornou uma doutrina que justificava o poder estatal. A grande atração da lei natural era sua flexibilidade e o poder formidável que dava a seus intérpretes. Os direitos humanos não são diferentes. Enquanto a fonte da lei natural passou do cosmo teleológico para a razão unificadora e, finalmente, para Deus ao longo de dez séculos, o funcionamento da moralidade permaneceu, em linhas gerais, o mesmo. “Certo” significava a resposta correta para uma pergunta moral-jurídica. Chegava-se a ela mediante a observação e contemplação da “grande cadeia do ser”. Até o início da modernidade, não existiam direitos individuais; os deveres eram os componentes da moralidade. Os fortes vínculos sociais de cidades e comunidades criaram um forte senso de dever e virtude moral. Como Hannah Arendt afirmou, de forma controversa, os escravos atenienses tinham uma vida melhor graças aos deveres de seus senhores do que as minorias sem Estado do início do século XX – ou os refugiados de hoje – que usufruem vários “direitos” teóricos, mas não têm proteções reais. O aspecto ressaltado por Arendt é uma réplica útil a Jack Straw e ao Partido Conservador que sustentam que os deveres deveriam ser introduzidos na lei dos direitos humanos. Nosso direito legisla obrigações no direito penal ou civil. Mas os deveres morais não podem ser facilmente objeto de legislação. Os deveres surgem naturalmente em famílias e comunidades a partir de fortes vínculos “naturais”. A lei pode fortalecê-los, mas não pode criá-los. Conciliação precária A precária conciliação de Tomás de Aquino entre princípios clássicos e cristãos começou a se desfazer no século XIV. Os chamados teólogos “nominalistas” sustentavam que a vontade de Deus tem primazia sobre sua razão. A lei natural foi imposta por Deus ao mundo – e Ele podia mudá-la radicalmente. Deus podia tornar duas vezes dois igual a cinco ou transformar o mau em bom ou o bom em mau. O nominalista Guilherme de Ockham, famoso por causa de O Nome da Rosa, afirmava que os indivíduos, e não as comunidades, eram os componentes do cosmo, sendo suas relações externas, e não imanentes. Como o expressou a Sra. Thatcher (que poderia ser chamada de uma nominalista contemporânea), não há sociedade, apenas indivíduos e famílias. Se a lei é imanente e racionalmente compreensiva, ou imposta de fora, é a questão crucial nos debates contemporâneos entre as pessoas que creem que os direitos humanos são sustentados universalmente de formas idênticas e os relativistas que o negam. Neste contexto, os relativistas se parecem com os filósofos gregos clássicos, crendo que um código moral só pode funcionar se corresponde à organização e aos valores internos de uma determinada sociedade. Os valores emergem organicamente; a imposição externa seria tanto errada quanto ineficaz. Em contraposição a isso, os universalistas muitas vezes seguem os nominalistas: leis e valores podem e devem ser impostos a partir de fora. Se existe uma só verdade em questões de moral, seu possuidor tem o direito (se tiver o poder) de impô-la aos outros. Como as relações sociais são externas e artificiais, mesmo as sociedades relutantes em breve concordarão e aceitarão o código universal. Nossas recentes guerras para exportar os direitos humanos e a democracia foram realizadas sob bandeiras universalistas, mas pertencem à tradição nominalista. E, como sabemos, a reconciliação de filosofia e teologia por parte de Tomás de Aquino foi um fracasso. No início da modernidade, a posição nominalista se tornou dominante e transformou a natureza em um objeto inanimado destituído de espírito ou harmonia. O direito natural foi dividido: de um lado, estavam as leis imutáveis da natureza que descrevem regularidades físicas; do outro lado, as leis humanas da igreja ou do Estado. As extremidades finais que tinham unido o cosmo sob uma concepção do bom foram substituídas pelas causas eficientes da natureza desencantada. As consequências destas mudanças para o direito e a política foram tiradas por Hobbes, Locke, Paine e Rousseau. Rousseau era o autor favorito dos revolucionários franceses cujo primeiro ato foi aprovar uma Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão. Os Direitos do Homem de Paine influenciaram muito os revolucionários americanos. A teoria dos diretos naturais anima a Declaração da Independência e a Declaração de Direitos. Depois das revoluções, o que era “certo” de acordo com a natureza e a justiça foi transformado em direitos naturais: um conjunto de poderes e liberdade pessoais, normalmente os direitos à vida, liberdade e propriedade, que pertencem às pessoas porque fazem parte de sua natureza. O método dos filósofos era observar as pessoas e, deduzindo as necessidades e desejos básicos da natureza humana, redigir uma constituição supostamente acordada em um contrato social fictício. Os direitos se tornaram as ferramentas através dos quais os seres humanos modernos, na ausência do bem, perseguem suas concepções antagônicas de uma vida feliz. A invenção do contrato social É crucial que a invenção do contrato social tenha aberto a possibilidade para a resistência e revolta se leis do Estado estivessem violando direitos. Mas seu potencial revolucionário era óbvio demais para os revolucionários vitoriosos. Logo depois das revoluções, os direitos naturais atrofiaram. O século XIX foi a época da engenharia social nos países metropolitanos e do colonialismo na periferia. A lei se tornou uma ferramenta nas mãos de governos, construtores de impérios e reformadores. Apelos a princípios morais ou direitos individuais eram vistos como obstáculos reacionários para o progresso. Como o expressou o utilitário Jeremy Bentham, falar sobre direitos naturais é “bobagem, bobagem sobre pernas de pau”. A introdução de explicações abrangentes na sociologia, economia e psicologia, juntamente com o surgimento de partidos políticos de massa, acelerou o declínio dos direitos naturais. A reivindicação de que a sociedade política era criada por meio de um contrato social foi vista como um mito, enquanto a asserção de que certos direitos são naturais e inalienáveis foi refutada por Durkheim, Weber e Marx. A Sociedade para a Prevenção da Crueldade contra os Animais foi criada em 1823, enquanto que a Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade contra as Crianças apenas em 1889. No século 19, defensores dos direitos das mulheres se referiam repetidamente à proteção dos animais como o modelo a ser imitado. Na primeira metade do século XX, a teoria dos direitos naturais tinha sido descartada como exemplo obsoleto de conservadorismo religioso. Os direitos naturais só foram reabilitados durante o julgamento dos criminosos de guerra nazistas em Nurembergue – na nova forma dos direitos humanos. Os juízes aliados foram confrontados com uma defesa juridicamente convincente. Os réus alemães tinham seguido as leis nazistas e agido dentro dos limites da lei do Estado – a única lei válida, de acordo com a ortodoxia corrente. Para lidar com este problema, o tribunal argumentou criativamente que os extermínios sistemáticos de judeus e outros tinham violado o direito consuetudinário e os princípios das nações civilizadas. Ao fazer isso, o tribunal redescobriu princípios importantes da lei natural: sua insistência de que existe uma hierarquia de leis e de que, independentemente do estado da lei nacional, os princípios jurídicos universais prevalecem. Direitos humanos: ocidentais e/ou universais? Escravidão, extermínio de populações indígenas e atrocidades coloniais tinham sido repetidamente cometidos pelo Ocidente. Agora, porém, que europeus tinham tentado exterminar outros europeus, o conceito de “crimes contra a humanidade” entrou no léxico jurídico. A humanidade foi dividida em vítimas e perpetradores. Depois de 1945, aceitamos com atraso que a humanidade é o anjo exterminador contra si mesma. Nurembergue e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 deram início a um enorme processo internacional de estabelecimento de padrões como reação a isso. Centenas de declarações, convenções e acordos foram adotados desde então pelas Nações Unidas, organismos regionais e Estados. Os direitos humanos se diversificaram, passando dos direitos civis e políticos de “primeira geração” ou “negativos”, associados com o liberalismo, para direitos de segunda geração – isto é, direitos econômicos, sociais e culturais ou “positivos”, associados com a tradição socialista – e, finalmente, para direitos de “terceira geração” ou direitos de grupo ou soberania nacional, associados com as lutas de descolonização. Seguiram-se rapidamente comissões, tribunais e cortes. O que está por trás desta proliferação aparentemente incontrolável? A humanidade se tornou mais segura em consequência disso? Os horrores da Segunda Guerra Mundial e o Holocausto deixaram claro que a democracia e tradições constitucionais e jurídicas nacionais não estão em condições de prevenir atrocidades em grande escala. Como o expressou Hannah Arendt, “é perfeitamente concebível que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada concluirá de forma inteiramente democrática – a saber, por decisão da maioria – que para a humanidade como um todo seria melhor liquidar certas partes dela”. Os direitos humanos internacionais foram concebidos como um tipo de lei superior que prevalece sobre as políticas nacionais. Neste sentido, os direitos humanos são intrinsecamente antidemocráticos, quando agem em defesa dos vulneráveis e dos oprimidos contra os preconceitos da maioria. Eles tentam impor restrições a governos e legislaturas para impedir que sejam bestiais em relação aos “outros” de cada época e sociedade. Parafraseando Nietzsche, se Deus, a fonte da lei natural, está morto, ele foi substituído pelo direito internacional. O Deus cristão começou se tornar vulnerável a tendências seculares no final da Idade Média na época em que seu poder absoluto era marcante, mas outros deuses, incluindo o Leviatã ou “deus mortal” de Hobbes, apareceram no cenário mundial. A arrogância e ignorância de alguns entusiastas dos direitos humanos podem estar repetindo o mesmo processo. E então, os direitos humanos são ocidentais e/ou universais? Sem dúvida, sua árvore genealógica é ocidental. O confucionismo, hinduísmo, islã e as religiões africanas têm suas próprias abordagens à ética, dignidade e igualdade, muitas delas semelhantes às ocidentais. Mas as filosofias e religiões não-ocidentais retêm uma base comunitária mais forte e não fizeram parte do desenvolvimento inicial do movimento dos direitos humanos. Solicitaram a John Humphrey, que preparou a primeira redação da Declaração Universal, que estudasse filosofia chinesa antes começar seu trabalho. “Não fui à China”, relatou ele mais tarde, “nem estudei os escritos de Confúcio.” Os direitos humanos são universais? Este breve histórico coloca os parâmetros para uma discussão inteligente da mais importante questão para a filosofia política de nossos tempos. | ||
A tradução é de Luís Marcos Sander. Fonte: Unisinos |
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Os direitos são universais?
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