Por Tatiane Ribeiro
Sem glamour nem holofotes, a mensagem é clara. “Se alguém disser que hip-hop é moda, então eu digo que é a moda mais longa do mundo, porque desde o início dos anos 80 o hip-hop já estava nas ruas”, dispara Nelson Triunfo.
Caminho pelas ruas e vielas do bairro da Penha, em São Paulo, em companhia de um dos precursores do hip-hop no país. Mas Nelson Gonçalves Campos Filho, 56, faz questão de frisar que não se sente a vontade com o título. “Eu sempre vi isso, de viver de arte, como ser guerreiro.”
Nelsão, como é conhecido, nasceu na cidade de Triunfo, no sertão de Pernambuco. No meio do baião de Luiz Gonzaga, ouviu também a batida forte das músicas de James Brown, através das ondas do rádio. Mesmo sem saber que estilo era aquele, deixou o cabelo crescer e começou a ler sobre Toni Tornado, que chegava do exterior com um novo jeito de dançar.
Com tanta personalidade, o homem que já viajou com a família em um pau de arara, durante 15 dias, para chegar ao Rio de Janeiro, persistiu no gosto e se tornou o “pai do hip-hop brasileiro”. Passou dificuldades na vida, apanhou da polícia e resistiu. Em 2006, representou o país na Copa da Cultura 2006, em Berlim, na Alemanha.
Atualmente, Nelsão coordena a Casa de Hip Hop de Diadema e ainda encontra fôlego para ter aulas de inglês. “Quero aprender mais outros dois idiomas.”
São tantas as suas histórias que o jornalista Gilberto Yoshinaga está escrevendo, desde 2009, sua biografia. “Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop”, produzido de forma independente com o apoio da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), não tem data para ser lançado.
Enquanto o livro não sai, Nelsão conta um pouco da sua história para o Mural.
(Confesso: a conversa foi tão boa, que foi difícil cortar.)
Como foi o começo?
Costumo dizer que eu “sai me criando”. Na juventude, eu e meus amigos éramos considerados rebeldes por ouvir as músicas “gringas”. Havia muito preconceito. Gozavam do nosso cabelo grande, mas não dávamos atenção. Éramos o calo no sapato mesmo. Minha cabeça estava 20 ou 30 anos à frente daquela geração. Com 16 anos eu fui para Paulo Afonso, na Bahia, e lá ouvi pela primeira vez o vinil do Toni Tornado. Montei, com mais dois amigos, o primeiro grupo de dança soul, do nordeste brasileiro. Mas durou apenas dois anos, porque me mudei para Brasília, para estudar. Lembro de um professor que na frente dos outros 45 alunos disse que me daria um emprego de gerente se eu cortasse o cabelo. Eu agradeci, mas disse que não poderia ficar porque partiria para São Paulo. Eu tinha certeza absoluta que precisava ir.
O que aconteceu quando chegou a São Paulo?
Era a época do militarismo. Conheci Toni Tornado e outros artistas, mas tinha problemas com a lei por causa do cabelo “black Power”. Dançava na rua 24 de maio, no centro da cidade. Os policiais chegavam e batiam. Sentia raiva e vontade de fazer mais. Muita gente chegou a dizer que dançava por diversão e eu respondia que quem conhecia resistência devia saber o que significava. Porque apanhar e depois voltar para fazer a mesma coisa, não tem nada a ver com curtição. O que eles diziam ser vagabundagem, eu queria provar que era arte. E, em um país onde nem os bailarinos clássicos conseguiam sobreviver do seu trabalho, tudo era muito difícil. Pelo menos os bailarinos eram respeitados. Nós éramos chamados de palhaços. Mas enquanto pensavam que éramos apenas um monte de doidos reunidos, com cabelão e roupa colorida, nós articulávamos as ações.
Qual o motivo de tanto preconceito?
Toda sociedade reflete a sua educação. A nossa é uma educação europeia que foi muito boa para os europeus, mas agora nem para eles funciona mais. Fizeram acreditar que só pessoas de família nobre poderiam ter destaque na sociedade. Muitos nordestinos diziam para mim que nunca conseguiriam mudar de vida, porque eram negros. Conformaram-se com esse método, de forma inconsciente. Por exemplo, verbos como a palavra “denegrir” são preconceituosos e estão enraizados no vocabulário brasileiro. Tratavam tudo que vinha do povo de forma pejorativa. E como o hip-hop veio associado às favelas, quem estava em suas casas de luxo não queria saber o que estava acontecendo naquela realidade. Chamavam os artistas de drogados, que só sabiam falar mal da polícia. E, na verdade, fomos nós que levantamos questões hoje muito presentes, como a milícia no Rio de Janeiro. O hip-hop fez nos últimos anos o papel questionador que a MPB fez na ditadura.
Mudou muito atualmente?
Melhoramos bastante. Temos vários jovens que sobrevivem de oficinas culturais, que são microempresários, muitos que não conheciam nem o centro de São Paulo e hoje vivem viajando para Berlin, Copenhagen, Paris, Lisboa, Madri e até a Finlândia. Foi por meio da linguagem do hip-hop que conseguimos fazer uma educação paralela dentro dos bairros. A contribuição foi muito grande. Agora, na casa do hip-hop, tem até mães que levam seus filhos e ficam lá esperando eles dançarem.
Como é ser precursor do hip-hop?
Eu senti pesar os meus pés somente em um show no Sesc Itaquera, em 1999, quando o meu filho me perguntou o que eu sentia ao ver aquele lugar tão cheio. Mas eu fujo de títulos, porque vivo no presente, de forma simples. Penso em algo e faço tudo para dar certo. E depois parto para outra. Não me acomodei com as porradas que levei.
Como o hip-hop faz o trabalho de inserção social?
Atraímos os jovens pelo que eles mais gostam de fazer. Muitos chegam lá doidos para grafitar, dançar. Damos a oportunidade de fazer o que quiserem, mas mostramos que é preciso conhecer outras coisas. Funciona com uma troca: você abriu um espaço para ele e ele vai abrir o coração para você. Para quem quer pintar, pedimos para estudar sobre Picasso, Van Gogh. Para quem quer fazer rima, mostramos a embolada, questionamos o que entendem das letras de Jackson do Pandeiro. Fizemos um evento sobre Lima Barreto, Machado de Assis, Cruz e Souza e Luiz Gonzaga.
O hip-hop é contestador?
Sim, mas também é divertido, porque é alegre e dançante. Claro que a politização vem em primeiro lugar, mas não deixamos de fazer humor dentro disso. Com o hip-hop nasceu dentro da concepção do coletivo, ele é a favor da diversidade. Tem a letra do cara que nunca saiu da favela. Ele não vai falar de Romeu e Julieta ou da guerra em Bagdá, vai contar a realidade dele ali. Tem outro que mora na quebrada, mas já viajou por diversas capitais e vai misturar as referências. Tem o que desencanou desse mundo e acha que a religião é a saída, então fará uma letra gospel. Dentro da dança, tem o b-boy de Pernambuco que vai misturar o frevo, o da Bahia que prefere incluir os movimentos da capoeira. Estar aberto a outras manifestações é muito importante contra a alienação.
O que o hip-hop traz de bom para o jovem?
Primeiro é a sociabilização. Dentro de um espaço de hip-hop com cunho social, as pessoas se tratam como iguais. O jovem passa a se sentir inserido a partir do momento que os outros começam a se interessar pelo que ele faz. E não é a música ou a dança que são os pontos fortes, mas a conscientização. A partir dela, passam a ser politizados e isso é muito importante para que não ninguém seja feito de fantoche. A juventude sempre foi a mudança de um país. Quando alguém pensa que está tudo bem, isso é muito perigoso, porque assim começam a ser inseridos numa cultura de massa que não agrega nada.
Para acompanhar os bastidores da biografia em produção:
http://biografiadenelsontriunfo.blogspot.com/
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