Dedo na ferida


Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, chega aos 10 anos como retrato de um passado vivo. Autor do romance, Paulo Lins diz que corrupção, violência e racismo são ainda mais fortes
Sérgio Rodrigo Reis

Cidade de Deus, filme de Fernando Meirelles inspirado no romance homônimo de Paulo Lins, está completando 10 anos. Longa e livro narram como o tráfico chegou nas periferias do Rio de Janeiro no fim dos anos 1960 e foi se transformando em indústria nos anos 1970. É o tempo que a história alcança. Depois disso, o “negócio” da droga cresceu e, nos anos 1990, o Rio já estava dividido entre grupos que controlavam o tráfico e que guerreavam entre si. A novidade da última década foi a entrada das milícias nas comunidades. “Esses ex-policiais começaram a expulsar o tráfico, mas não eram menos bandidos do que os próprios traficantes. Finalmente, agora, o Estado parece que encontrou um caminho para retomar as comunidades cariocas: as polícias pacificadoras. Ha problemas, mas há bons resultados”, avalia Meirelles. Para ele, de certa forma, o filme ajudou a jogar luz sobre o tema. “A sociedade paralela no Brasil passou a fazer parte do nosso imaginário. Um problema só pode ser enfrentado quando é visto”, observa o cineasta.
“A história não é mais atual, a realidade mostrada ali já é completamente outra, mas creio que o filme serve como um retrato razoavelmente fiel de um período e de um lugar. Nunca pensei em contar outra história, mas certamente, se estivesse montando hoje, faria o ritmo um pouco mais lento, menos frenético”, diz Meirelles. O filme disputou – sem ganhar – os Oscars de melhor direção, edição, roteiro adaptado e fotografia. Um feito inédito.
Depois da repercussão de Cidade de Deus e do projeto ter inspirado a série Cidade dos homens, para a Rede Globo, e, em seguida, o filme de mesmo nome, considera que dentro da sua produtora, a O2, o que tinha para falar deste universo já foi dito. Há apenas uma novidade. Dentro das comemorações dos 10 anos do longa que o projetou para o mundo está previsto o lançamento de três HQs: o primeiro álbum narra a infância dos personagens Dadinho e Zé Pequeno e a história do Trio Ternura; a outra revista mostra o crescimento de Dadinho e sua transformação em Zé Pequeno; e, no último volume, como a guerra pelo poder se estabeleceu na Cidade de Deus.
A ideia dos quadrinhos foi do próprio Meirelles. Há três anos, quando foi criado dentro da O2 um departamento só para as artes, em conversa informal entre os parceiros lembrou que, desde a produção do filme, por ser fã do gênero, tinha vontade de criar uma HQ. O projeto ganhou fôlego há um ano, quando um dos ilustradores chegou ao estilo de desenho capaz de empolgar todos. “O processo é quase o contrário do storyboard. Fernando separou grosseiramente os frames e os diálogos da película que mais gostava e entregou para os ilustradores, quase como um guia. Eles redesenharam em cima”, explica Ricardo Laganaro, diretor da O2 e responsável pelo projeto. A proposta é lançar as revistas na Bienal do Livro em São Paulo, em agosto, mas ainda são necessárias autorizações de parte dos atores.
Comunidades Fernando Meirelles se tornou diretor com considerável projeção internacional. Já os atores do Cidade de Deus, a maioria selecionada em testes nas comunidades cariocas, tiveram caminhos diversos. Alguns mantiveram-se na carreira artística e outros foram para outras direções. Fernando Meirelles lembra que, logo no fim das filmagens, ajudou a criar a ONG Cinema Nosso. A responsável por manter o projeto vivo foi Kátia Lund, que trabalhou com o cineasta no projeto do filme. “A ONG continua em ação e por ali já passaram milhares de jovens de várias comunidades. Ha ainda alguns ex-atores lá, como o Luís Nascimento, que dirige o trabalho, mas a maioria agora são garotos que têm interesse em cinema e buscam, na ONG, uma maneira de entrar na carreira.”
A repercussão do longa não atingiu todos do mesmo jeito. Alice Braga, Seu Jorge e Matheus Nachtergaele viraram estrelas do cinema, música e televisão. Alguns vindos da comunidade prosseguiram na arte e outros não deram continuidade à carreira. “Nem todos conseguiram absorver bem e administrar o sucesso. O documentário Cidade de Deus – Dez anos depois, produção de Luciano Vidigal e Cavi Borges, promete recuperar o tumultuado percurso da vida dos 30 atores do projeto original. “Infelizmente, há mais histórias negativas do que positivas”, diz Leandro Firmino, ator que viveu o Zé Pequeno. Atualmente trabalhando na área, diz que Cidade de Deus mudou sua vida. “Nunca tinha pensando em trabalhar com arte e cinema. Durante minha infância e adolescência era improvável essa realidade, pois morava em comunidade carente.” Leandro está prestes a voltar ao set, depois de participar de novelas e filmes. Estará em Vai dar samba, produção que será rodada em Muriaé, na Zona da Mata.
Com todas as letras
Quando escreveu o romance Cidade de Deus, Paulo Lins não tinha ideia da proporção que o livro poderia alcançar. Pouco antes de a obra chegar às livrarias, o documentarista João Moreira Salles, depois de ler os originais, lhe disse: “Este livro vai ganhar o mundo e você vai virar celebridade”. Na última semana, quando o escritor chegou no aeroporto de Barcelona para participar de uma série de seminários, receoso de ter algum problema para entrar na Espanha, como vem ocorrendo com muitos brasileiros, confirmou a profecia ao ouvir do policia: “Que prazer Paulo Lins. Li seu livro e adorei”. A repercussão do livro pode ser aferida pelos 200 mil exemplares vendidos no Brasil e pela série de traduções para vários idiomas. Em breve, deverá virar musical nos EUA. Porém, nada se compara à proporção da adaptação para o cinema.
Ao ser procurado por Fernando Meirelles para vender os direitos de adaptação do romance, pesou a favor a promessa de que o trabalho seria feito predominantemente por atores da periferia. As negociações também pareciam compensar. “Vendi por R$ 80 mil mais 5% do lucro do filme. Recebi o dinheiro da venda, porém nunca a parte relativa ao lucro. Não apareceu nada ainda. Acho que é porque não deve ter dado lucro para a O2”, comenta em tom de ironia, para, em seguida, enaltecer as qualidades do filme. “Trabalharam com gente da favela que conhecia de perto aquela realidade. Tinham a vivência, conheciam a linguagem, o andar. O Fernando dava a cena e faziam”, lembra ele, que por várias vezes esteve no set.
A realidade das favelas é parte da história pessoal do escritor. Nascido no subúrbio, Paulo Lins, ainda na faculdade de letras, começou a escrever poesia e, incentivado pela sua orientadora, Alba Zaluar, começou a entrevistar moradores de Cidade de Deus sobre a criminalidade. Ao ver o resultado, a professora o incentivou a escrever o romance.
“Foi difícil escrevê-lo, porque militava na poesia.” Para ele, a projeção do livro se deve, sobretudo, à temática, que, na sua visão, infelizmente, não evoluiu. “Ali estou falando de violência, mas também de racismo, da violência social, policial e isso não melhorou nada.” A proporção do debate provocado pelo livro foi tão ampla que acabou travando o escritor. “O sucesso foi inesperado e bloqueei.” O novo livro, Desde que o samba é samba, só saiu este ano. “Nele, falo do começo da malandragem, do samba e da propina”, encerra. De volta à ativa, Lins trabalha com Luiz Fernando Carvalho no roteiro da minissérie Subúrbia, que estreia este ano na TV.

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