CRACK » Dependentes até da Justiça


Consumidores de drogas, principalmente da pedra, predominam entre pacientes psiquiátricos internados a mando de juízes em Minas. A cada dois dias, um usuário dá entrada em hospital por determinação do Judiciário, uma solução extrema que está longe de ser consenso

Paula Sarapu e Valquíria Lopes
Em um estado em que o crack se alastra entre pessoas de todas as idades, classes sociais e categorias profissionais – como ficou evidenciado na semana passada, com a prisão de um major da Polícia Militar consumindo a droga –, os casos de dependência de entorpecentes predominam com ampla margem nas internações psiquiátricas por ordem judicial. A cada dois dias, um usuário de crack e outras drogas dá entrada em hospitais de Minas por determinação da Justiça. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde, 210 pessoas com transtornos mentais foram internadas compulsoriamente no estado desde julho de 2011, média de 19 por mês. Desses pacientes, 79% são dependentes químicos, especialmente da pedra, o que representa média de 15 casos por mês.
Ainda segundo a secretaria, pode-se perceber um aumento no número de casos de dependentes químicos que constam como “primeira entrada”, ou seja, aqueles que não têm registro de internação anterior. Dados como esses obrigam as instituições responsáveis por lidar com o desafio a se adequar. Uma das medidas nesse sentido deve ser lançada hoje pela Comissão Especial para Enfrentamento ao Crack , sob a forma de um plano de ação para avaliar as internações involuntárias e compulsórias (veja definições no quadro), estabelecendo um acompanhamento pós-internação ao dependente e à sua família. Outra medida será a inspeção de unidades que acolhem inadequadamente esses pacientes.

O coordenador de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde, Paulo Roberto Repsold, revela que a maioria das internações decididas pela Justiça está relacionada ao uso do crack. Ele confirma a escassez de leitos agudos – aqueles em que o paciente fica por um período de tratamento – e considera que muitas vezes a internação pode ajudar a equilibrar o dependente que sofre com a intoxicação e síndrome de abstinência, que necessitam de tratamento emergencial, porque nessas crises os usuários oferecem risco a outros pessoas e a si próprios.
“Quando o juiz precisa determinar a internação, é porque há algum problema. Ou falta de vagas, ou falta de vontade do dependente, que sequer tem condições de decidir sobre isso. Na fissura, por exemplo, ele perde a capacidade de discernimento, porque fica escravo da droga. É falácia dizer que o dependente só deve ser tratado se quiser, porque essa é uma doença corrosiva do ponto de vista psicológico, físico, financeiro e social”, defende ele.
Hoje, há 80 usuários internados no estado, enquanto 130 encontram-se em atenção ambulatorial ou sem demanda de tratamento. Nas unidades públicas e particulares de Minas Gerais que atendem pelo Sistema Único de Saúde (SUS), segundo Paulo Roberto, são mil vagas para pacientes de longa permanência, remanescentes de manicômios, e 1.350 leitos agudos. “A rotatividade é bem grande, mas o hospital nunca fica vazio. Esse é mesmo um desafio que o governo reconhece, porque nos últimos 20 anos houve extinção progressiva de leitos e hospitais psiquiátricos, sem que se imaginasse que surgiria uma doença desse tipo, que precisa desse atendimento”, explica Paulo Roberto.
Na capital, desde o ano passado seis casos de internação de dependentes foram decididos na Justiça, a maioria, cinco, apenas neste ano. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, quatro processos foram movidos por terceiros (familiares ou curadores dos pacientes), um pelo Ministério Público e outro pelo próprio paciente, que recorreu ao Judiciário para garantir sua internação antes mesmo de procurar atendimento na rede do SUS em Belo Horizonte. A secretaria, em nota, diz que investe em serviços substitutivos e, como determina a lei, adota as internações como último recurso terapêutico.
De fato, o acolhimento hospitalar, especialmente o determinado à revelia da vontade do paciente, está longe de ser uma solução de consenso. Além das estatísticas que apontam a saída como pouco resolutiva do ponto de vista de tratar a dependência, há também a resistência daqueles que temem que a solução possa ser adotada como uma espécie de “limpeza social”, contrariando os direitos dos usuários.
O QUE DIZ A LEI
Lei Federal 10. 216/01, em relação às internações, no artigo 6
– Voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário
– Involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiros
– Compulsória: aquela determinada pela Justiça

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PONTO CRÍTICO

A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA É NECESSÁRIA?
Luiz Flávio Sapori, especialista em Segurança Pública e coordenador do Centro de Pesquisa em Segurança Pública da PUC Minas
SIM: A internação compulsória é importante e necessária. Diante da ausência de políticas públicas para tratamento dos dependentes de crack e outras drogas, ela tornou-se a única saída para famílias desesperadas com um usuário compulsivo em casa. As medidas convencionais não dão conta de atender a demanda e é por esse motivo que o número de medidas de internação compulsória autorizadas pela Justiça tem sido tão alto. O poder público evita falar sobre o assunto, porque não tem onde receber tantas pessoas. Faltam ações efetivas para fazer com que os juízes não precisem adotar essa solução. Enquanto isso, ela precisa ser adotada com outras medidas de tratamento, especialmente nos casos de usuários compulsivos. O recolhimento em um prazo de 40 a 45 dias garante condições para que o usuário possa se restabelecer, sair do extremo da dependência e ter discernimento para decidir pelo seu posterior tratamento.
Jacques Akerman, membro do Conselho Regional de Psicologia-Minas Gerais e professor da universidade Fumec
EM TERMOS: A ineficácia da internação compulsória mostra que ela deve ser usada apenas com a última saída para tratamento, para não se tornar uma modalidade de sequestro e de “higiene” autorizada pela Justiça. Não pode ser vista como uma solução mágica, como tem sido apresentada. E esse é o problema, já que as políticas de tratamento não têm dado prioridade à construção de uma rede de atenção capaz de abordar e acompanhar a pessoa, bem como seus familiares, a longo prazo. A prioridade deve ser para medidas que possam construir uma relação da pessoa com o tratamento. Entre elas estão investimentos em abordagens, acompanhamento ambulatorial, encaminhamento para núcleos de assistência psicossocial, atenção das equipes de saúde da família, além de outras ações intersetoriais. A internação compulsória só deve ser incluída em último caso, depois de esgotadas as possibilidades de tratamento. Ela não pode ser usada como uma panaceia, como o primeiro dispositivo diante do desespero de uma família.

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