Recomendação da ONU para que Brasil extinga polícias militares é vista por especialistas como ineficaz para coibir assassinatos de civis e reacende o debate sobre a unificação
Maria Clara Prates

A recomendação do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) para extinguir as polícias militares no Brasil como parte da estratégia para reduzir as execuções promovidas pela corporação recebeu críticas de diferentes especialistas que não a veem como solução para os graves problemas de segurança pública. O governo brasileiro tem um mês para atender a sugestão, que é apenas uma das 170 feitas pela ONU sob a alegação da necessidade de combate efetivo de esquadrões da morte que atuam ainda hoje no país.

Para a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (Cesec), a solução apresentada para redução da violência policial é simplista demais. Julita defende que o país promova, o quanto antes, a reorganização das suas polícias, uma discussão que vem sendo adiada há vários anos. “Eu gosto do modelo americano de uma polícia única, com carreira única, mas com um seguimento fardado e outro de investigação. Podemos caminhar para isso, à medida que avançar a unificação das forças policiais – Militar e Civil –, como vem sendo tentado em alguns estados”, avalia. O que tem dificultado a reorganização, segundo ela, são as culturas distintas e a disputa de espaço político entre as duas corporações. “Quem tem informação tem poder e as polícias resistem em compartilhar seus bancos de dados”, analisa.
De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o governo não tem dados da execução de civis por policiais militares, mas o Cesec estima que 900 civis foram mortos pelas PMs no ano passado, só no Rio de Janeiro e em São Paulo. O contingente representa 6,57 vezes o número de mortes causadas pelas 19 mil forças policiais dos Estados Unidos – federais, estaduais, municipais e as que atendem à comunidades –, que, no mesmo período, cometeram 137 assassinatos contra civis.

Para debater a recomendação da ONU – aprovada como parte do relatório de Grupo de Trabalho sobre o Exame Periódico Universal (EPU) do Brasil, uma avaliação à qual se submetem todos os países –, a Câmara dos Deputados promove no dia 14 uma audiência pública. A discussão com a sociedade foi proposta pelo deputado Chico Lopes (PCdoB/CE), que inclui o debate sobre a unificação das polícias brasileiras, que não tem avançado no país.
De acordo com o relatório, além da extinção da PM, a ONU sugeriu que os governos estaduais considerem a aplicação de programas similares à experiência do Rio de Janeiro de instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Pesquisa feita pela Universidade Cândido Mendes revela uma queda no número de homicídios praticados contra civis por policiais a partir da experiência. Em 2007, o índice atingiu o topo do gráfico com 1.330 mortos contra 850 em 2010.
Democratização Além de provocar ira na cúpula das polícias militares do país, a recomendação foi acusada de ser uma solução superficial. O filósofo Robson Sávio Reis Souza, coordenador do Núcleo de Estudos Sóciopolíticos da PUCMinas (Nesp), comparou a proposta a “um remendo em um pano velho”. Ele defende a democratização das forças militares, que ainda carregariam consigo resquícios do século 19, quando a corporação foi criada para proteção de chefes políticos e do patrimônio das elites. Para Robson Sávio, é importante percorrer o caminho da unificação das corporações – Militar e Civil – até se chegar ao que ele considera ideal, a chamada polícia de círculo completo, responsável desde a repressão do crime até a investigação. O professor da PUC argumenta que a extinção da PM não seria eficaz, por exemplo, para resolver a baixa resolutividade da Polícia Civil, que, em média, apura apenas 8% de todos os casos de homicídios no país, da falência do sistema prisional com índice de reincidência entre 80% e 85% nem a morosidade do Judiciário, que não é célere para julgar os crimes contra a vida.
Com argumentos distintos, o assessor de imprensa da Polícia Militar de Minas Gerais, major Gilmar Luciano, classificou a recomendação da ONU como “descabida e desproporcional” e “típica de quem desconhece a realidade brasileira depois da Constituição de 1988”. De acordo com o major, a existência no Brasil de uma polícia ostensiva, de preservação da ordem pública, e uma Judiciária, de investigação, é o modelo ideal de segurança pública para um país de dimensão continental. “A PM de Minas tem 45 mil homens na ativa e é o único serviço público presente nos 853 municípios do estado, mas não está imune a bandidos que burlam o processo seletivo e se envolvem com o crime”, argumenta. “A instituição não pode responder por isso”, reitera, sugerindo que a ONU só dê recomendações ao Brasil depois que tiver solucionado as graves violações de direitos humanos em Guantánamo, prisão militar dos Estados Unidos em Cuba. A Secretaria de Estado de Defesa Social informou que, em 2009, Minas teve 50 civis mortos em confrontos, e 53 no ano seguinte, mantendo um programa de controle de letalidade de suas forças policiais.

Pitaco de gringo
A recomendação em favor da supressão da Política Militar foi obra da Dinamarca, que pede a abolição do “sistema separado de Polícia Militar, aplicando medidas mais eficazes (…) para reduzir a incidência de execuções extrajudiciais”. A Coreia do Sul falou diretamente de “esquadrões da morte” e a Austrália sugeriu a Brasília que outros governos estaduais “considerem aplicar programas similares aos da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Já a França preferiu focar na atuação da recém-criada Comissão da Verdade, defendendo que ela fosse dotada de recursos necessários para reconhecer o direito das vítimas à Justiça. Algumas das delegações que participaram da elaboração do relatório concordaram também nas recomendações em favor de uma melhoria das condições penitenciárias, sobretudo no caso das mulheres, que são vítimas de novos abusos quando estão presas.
Memória
Câmara arquivou PEC
Uma nova estrutura policial para o país foi apresentada por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 46, de autoria do ex-deputado federal Hélio Bicudo (PT/SP) , em setembro de 1991. O texto previa a desmilitarização da Polícia Militar, que ficaria submetida à fiscalização do Judiciário. Por sua vez, a supervisão da Polícia Civil ficaria sob responsabilidade do Ministério Público. A proposta, de tramitação especial, não avançou e foi arquivada sem ir ao plenário, em 1994. O argumento é de que teria sido prejudicada pelo encerramento dos trabalhos da revisão constitucional.

Folha corrida

» Rio de Janeiro
Em outubro de 2011, 11 policiais militares são acusados de participação no assassinato da juíza Patrícia Acioli, executada com 21 tiros, em 11 de agosto daquele ano. Os mandantes foram o tenente-coronel Cláudio Oliveira e o tenente Daniel Benitez, de acordo com militares, insatisfeitos com as medidas judiciais da vítima que colocavam em risco o faturamento ilegal de esquema de corrupção que rendia a eles até R$ 12 mil de extras.
» São Paulo
Em setembro de 2011, oito policiais militares da temida Rota e do serviço secreto da PM são acusados de registrar boletins de ocorrências fraudados como casos de resistência seguido de morte depois de executarem o trabalhador autônomo Paulo Alberto de Oliveira Jesus, de 26 anos. A execução teve como motivação o trabalho informal como segurança dos militares que prestavam serviço em uma grande rede de concessionária de veículos, de onde foi roubada uma carga de pneus avaliada em R$ 1 milhão.
» Belo Horizonte
Oito policiais militares são acusados de executar Renilson Veriano da Silva e o sobrinho Jefferson Coelho da Silva, numa incursão no Aglomerado da Serra, Região Centro-Sul, em 19 de fevereiro de 2011. Para justificar as mortes, eles simularam uma reação a disparos que teriam sido desferidos pelas duas vítimas. O local dos crimes também foi alterado para tentar sustentar a versão de reação à suposta ação policial.

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