por Edson França*
Considero que as conferências de políticas públicas é mais um avanço do Governo Lula. Precisamos valorizá-las, pois podem contribuir sobremaneira com o desenvolvimento do diálogo entre o Estado e a sociedade civil organizada. Apesar dos grandes limites e que o palco mais viável para o movimento popular combater sejam as ruas, não podemos negar que as conferências têm mobilizado grandes contingentes, por isso podem ser um instrumento positivo para garantir pressão e participação popular na formulação e implantação das políticas públicas.
A 2ª Conapir se realizará diante de um delicado cenário para luta contra o racismo. Poderosas forças políticas e sociais avançam contra as principais proposições apoiadas pelo movimento negro. Os Projetos de Leis 6564/05 e 73/99 que instituem o Estatuto da Igualdade Racial e o Sistema Especial de Reserva de Vagas para Estudantes Egressos de Escolas Públicas - em especial negros e indígenas -, respectivamente, correm riscos de serem rejeitados no Congresso Nacional, pois enfrentam oposição organizada do DEM, PSDB, PPS e contam com a defesa tímida ou desconfiança de setores esquerda - ainda que sempre tenham se posicionado ao lado do povo. O Decreto Presidencial 4887/2003 que estabelece regras para titularização das terras quilombolas enfrenta uma ADIN proposta pelo atual DEM, além de estar sob a mira dos ataques da bancada ruralista que atua no Congresso Nacional.
A oligarquia midiática formada pelo consórcio que une Globo, Folha de São Paulo e Editora Abril milita contra todas as propostas de combate ao racismo, desinformando a opinião pública, constrangendo a classe política e absurdamente negando a existência do problema racial no Brasil. Ainda que existam organizações do movimento negro em quase todos os municípios do país; que os mais sérios institutos de pesquisas indiquem em seus estudos a existência do racismo e da desigualdade social, econômica e política entre negros, brancos e índios; que empiricamente vemos, quando não, percebemos o racismo, a negação do fato alicerça a retórica de Ali Kamel e seus correligionários.
Por outro lado, existem no interior do movimento negro quem faça defesa das políticas contra o racismo com argumentação tosca, obtusa, estreita e alienígena, diante das condições culturais e sociológicas do Brasil. Esse setor atrapalha, pois sua atuação constrange outras forças sociais anti-racista e não negras, assim contribuem com o isolamento do movimento negro e da luta política contra o racismo. Suas mensagens são contrárias aos verdadeiros anseios dos negros e do povo brasileiro. Advogam a existência de um povo negro separado do povo brasileiro e negam a unidade nacional; embebidos pelos ideais pós-modernistas e multiculturalistas não consideram as contradições de classes como elemento de estabelecimento de desigualdade coletiva, por isso pregam saídas exclusivistas; transplanta visões afrocentrada, anacrônica e inadequada a realidade do racismo no Brasil - são heranças da luta pelos direitos civis dos negros americanos e do movimento político cultural intitulado Negritude. Esse movimento surgiu na década de 50 do século passado, através da valorização das singularidades culturais africanas e críticas aos valores eurocêntricos contribuíram com a elevação da auto-estima dos africanos impulsionaram a descolonização no continente.
A luta dos negros brasileiros contra o racismo e pelo desenvolvimento social, econômico e político está diante de um flagrante impasse. Poderá ser equacionado após um processo de negociação envolvendo o movimento negro e as forças vivas que atuam na sociedade e no Congresso Nacional. Reafirmo que a questão racial é um problema posto à nação e não somente aos negros.
No entanto, até hoje, o movimento negro não delegou legitimidade a nenhum ator político negociar em seu nome, além de não se colocar explicitamente aberto a negociação. Isso é grave, pois não percebem que a manutenção do impasse será mais um veneno para derrotar as propostas do movimento negro. Temos que aproveitar a 2ª Conapir para debater formas de superar as principais deficiências do movimento negro que estão atrapalhando a aprovação das suas propostas, em outras palavras, “temos que fazer o dever de casa”.
Para isso será necessário abandonar a retórica divisionista, compreender que o combate ao racismo e a promoção da igualdade social tem relação com resgate de direitos sonegados no passado e no presente. Não estamos tentando fazer ajustes de contas com os herdeiros dos antigos senhores de engenhos, estamos apresentando propostas que contribuirão com desenvolvimento social do Brasil. Será fundamental iniciar um processo de negociação, procurando convergências de concepção, afirmação da indivisibilidade da nação e assumindo o princípio da desracialização. O movimento negro tem que abrir mão de pontos, mas assegurar a manutenção do caráter de ação afirmativa, contido nas propostas – especialmente em relação ao Estatuto da Igualdade Racial que sofre resistência mais ampla, inclusive de setores importantes do movimento negro brasileiro.
Racismo institucional
Quanto ao sistema de promoção da igualdade racial em curso, a conferência pode contribuir com sua consolidação, pois também está sob mira. Além da ação política dos racistas citados acima e da concepção equivocada de setores do movimento negro, a arma apontada para Seppir chama-se racismo institucional.
Consiste no fracasso das organizações do Estado e dos gestores governamentais em prever um serviço profissional e adequado às pessoas considerando as singularidades sociais produzida em razão da cor, cultura ou origem étnica. Essa incapacidade é decorrente da crença de que no Brasil não existe problema racial. Apesar de o Estado reconhecer a existência do racismo e ter diagnóstico da sua incidência sobrevive em suas entranhas a convicção que vivemos sob a égide da democracia racial.
O racismo institucional determina a inércia das organizações do Estado e gestores governamentais frente às evidências das desigualdades raciais. Só anularemos o poder deletério do racismo institucional ao desenvolvimento das políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade social se houver ações capazes de combater insistentemente a forma como o Estado brasileiro e os governos concebem o caráter universal das políticas públicas.
Tenho dito nos debates que não é aconselhável distribuir políticas públicas como se distribui milho aos pombos, sempre há pombos que por alguma razão não consegue se alimentar dos milhos jogados ao chão. Nesse caso, para verdadeiramente universalizar é necessário garantir a todos os pombos acesso ao milho, mesmo que seja necessário adotar medidas diferenciadas durante um tempo determinado para atender o pombo que por alguma desvantagem tem menor mobilidade para alcançar o alimento.
Esse é o fundamento das ações afirmativas, garantir igualdade de oportunidade e tratamento, compensando perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. Quando adotamos ações afirmativas, estamos, em última instância, universalizando de fato direitos sonegados. A 2ª Conapir está desafiada a lancar mãos de meditadas para capacitar o Estado a entender que as ações afirmativas não se contradiz com o princípio da universalidade, ao contrário, completa, pois esse principio não se justifica sem equidade.
Recursos públicos para políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade social
Enquanto não se disciplina o Estado e os gestores governamentais, as políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade tem que fluir satisfatoriamente, pois uma máquina gigante e obsoleta não responde no tempo necessário as demandas. Daí a importância da 2ª Conapir contribuir com propostas e ações que contribuam para equacionar o imbróglio orçamentário. Considero que a vontade política de disponibilizar, ou ter carimbado, recursos para políticas sociais é uma decisão diária em qualquer governo. Tratando-se da agenda anti-racismo a resistência cresce.
Compreendo que o movimento negro e demais movimentos sociais tem que enfrentar com mais radicalidade esse debate. Entrar no âmago da questão, trabalhar para desobstruir resistência e vencer forças políticas conservadoras que desviam os recursos públicos para suas contas bancárias. O Estado está em disputa sim. É um erro negá-lo e abandoná-lo para usufruto da burguesia.
Por isso concordo com a proposta da Unegro em reivindicar através da 2ª Conapir a obrigatoriedade de previsão no plano plurianual (PPA) e nas leis orçamentárias de recursos para políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade social, bem como, carimbar 3% do orçamento público para mesma demanda. Precisamos debater o destino do dinheiro que o povo paga através dos tributos.
Reposicionamento político do movimento negro
Além do debate sobre os rumos das políticas públicas e comportamento do governo frente a agenda anti-racista, a 2ª Conapir será o palco que apresentará como se encontra o quadro das forças políticas no interior do movimento negro, o que pensam, propõe, onde estão organizadas e como se relacionam. O processo de construção da conferência foi muito intenso, mobilizou os estados, capitais e vários municípios, é possível prever que haverá novidades que trará novos desafios.
Destaco o vertiginoso crescimento da União de Negros Pela Igualdade – Unegro, essa será sem dúvidas a maior organização presente na conferência. Terá oportunidade de fortalecer as correntes de opinião do movimento negro que articula a luta de classe, gênero e raça. A Unegro tem proposto uma nova agenda no movimento negro, que considera a necessidade de ações integradas com o movimento social, organização dos negros brasileiros nos partidos políticos de esquerda, nos sindicatos e em outros espaços da luta político-social brasileira. Forlalecerá o posicionamento que aposta no Brasil, na unidade do povo brasileiro e na construção do socialismo. A Unegro será uma força atuante na 2ª Conapir, estará comprometida com o fortalecimento político da promoção da igualdade social, seu crescimento contribuirá com o aumento do pensamento marxista no interior do movimento negro.
A emersão política dos religiosos de matriz africanas e o consequente empoderamento de suas lideranças e organizações (Coletivo de Ientidades Negras – CEN, Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira – Cenarab, Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira – Intercab, Coordenação Amazonense das Religiões de Matrizes Africanas e Ameríndias - Carma) colocará em definitivo a pauta da intolerância religiosa para o governo federal e irá interferir no reordenamento político do movimento negro, por isso é um segmento muito disputado. Devemos todo o carinho a demanda apresentada pelo povo de santo, a coletividade do movimento negro deve atentar para que seus pleitos pleitos fundamentais sejam observados, salvaguardando a laicidade do Estado, respeito ao direito de crença e o fortalecimento da cultura da paz e da interreligiosidade.
Os quilombolas através da Conaq e a juventude negra organizada são também forças emergentes, com alto poder de interferir nos resultados da conferência. Terão força política para dar centralidade na pauta política do governo, trarão críticas a morozidade do Estado regularizar as terras quilombolas e contra a violência que ceifa a vida dos jovens negros. Verificaremos como vem algumas forças importantes do movimento negro (Conen, APNs e Grucon) aparentemente perderam força, como conferência é momento de reaglutinação de forças é possivel recuperar posição, mas não serão forças hegemônicas. Partidariamente o PT continua com maior presença no movimento negro, joga um papel importante na luta contra o racismo, na atual conjuntura cresce o equilíbrio de forças com o protagonismo de outros partidos: PCdoB, PMDB, PDT, PSDB e PSB. Essa conferência será propícia para emersão das forças partidárias. Veremos, volto com um texto de avaliação final da Conferência.
*Edson França, É Coordenador Geral da Unegro, membro do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e da coordenação da Conen-Coordenação Nacional de Entidades Negra
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