Wania Sant’Anna*
“Afastada a questão de desigualdade, resta na transformação biológica dos elementos étnicos o problema da mestiçagem. Os americanos do Norte costumam dizer que Deus fez o branco, que Deus fez o negro, mas que o Diabo fez o mulato. É o ponto mais sensível do caso brasileiro. O que se chama de arianização do habitante do Brasil é um fato de observação diária. Já com um oitavo de sangue negro, a aparência africana se apaga por completo é o fenômeno do passing nos Estados Unidos. E assim na cruza contínua de nossa vida, desde a época colonial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa aparência de ariano puro.” Paulo Prado, Bacharel em Direito, fazendeiro, empresário e influente porta-voz da aristocracia paulista, em Retratos do Brasil, de 1928.
Em maio de 2008, no aniversário de 120 anos da Abolição do trabalho escravo, o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) fez ecoar por vários órgãos uma informação, para muitos, bombástica: mantendo-se as tendências demográficas atuais para a população brasileira de “cor/raça” branca e negra, em 2010 a população negra deverá ser maioria no país.
No Brasil, acontecimento como esse tem uma longa história, com vários capítulos, e todos difíceis de serem tratados em um único artigo. No entanto, existe algo sobre ele que ressalta como especial. Ao contrário do desejo – manifesto ou oculto – de transformar o país em uma nação menos negra que o perfil da população demonstrava ao final da escravidão – e ao contrário da ideologia do embranquecimento – empreendida e glorificada por diversos meios ao longo de mais de um século – os afro-descendentes no Brasil não desaparecerão de forma tão simples quanto se pôde, um dia, imaginar.
Essa provavelmente maioria em 2010 demonstra a superação de barreiras impressionantes a sua existência física e cultural. Nunca é demais lembrar, por exemplo, que os incentivos público e privado à política de migração européia de finais do século XIX e início do século XX, responsável, em seis décadas, pelo ingresso de mais de 4 milhões de cidadãos europeus, teve como uma de suas justificativas o embraquecimento da população brasileira e resultou, entre outras conseqüências, no desprezo e restrição ao uso da mão-de-obra recém-liberta em atividades produtivas tanto nas regiões urbana como rural.
O histórico de esquecimento e desvalorização dessa parcela da população pode ser percebido em quase todas as esferas de realização de direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. Por todo o país, a grande maioria da população afro-brasileira enfrentou, no seu primeiro século pós-escravidão, o infortúnio da fome, da insalubridade, do analfabetismo, da interdição ao voto por não saberem ler e escrever. Por todo século, em liberdade, os afro-brasileiros viram-se como alvos de aparatos de segurança por cultuarem os orixás, por jogar capoeira, por realizar rodas de samba, por não terem carteira de trabalho assinada, por terem uma “aparência suspeita”. Como diz o samba enredo, atravessou-se o século longe dos açoites da senzala, preso na miséria das favelas.
Assim, uma maioria afro-brasileira em 2010 desafia o histórico de taxas mais elevadas de mortalidade infantil, as sugestões freqüentes de esterilização das mulheres como o caminho mais “adequado” de redução da pobreza no país, as taxas mais elevadas de homicídio entre os jovens negros em qualquer região metropolitana. Assim, nós acreditamos que ser maioria, em 2010, é um acontecimento resultante da consciência forjada pelo discurso anti-racista de elevação da auto-estima da população negra e de luta por direitos elaborados pelas organizações do movimento negro e seus ativistas.
Se em mais de 120 anos os indicadores sócio-econômicos da população branca e negra permanecem apresentando diferenças tão expressivas na educação, nas condições de moradia, na ocupação, nos rendimentos resultantes do trabalho, na formação profissional, na ocupação de posições de decisão nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, qual o significado de, ainda assim, os afro-brasileiros virem a ser, numericamente, maioria em 2010 senão a consciência de que se deve, ao menos, respeitar a sua própria existência?
A persistência das classificações de cor
Considerando as classificações utilizadas nos censos brasileiros realizados desde o século XIX, é possível afirmar que a identificação étnico/racial da população brasileira não constitui uma realidade recente e que há 137 anos o país realiza levantamento sistemático sobre as origens étnico/raciais ou culturais de seus residentes. A novidade, desde os anos 80 do século passado é a pressão do movimento negro e seus ativistas para que os dados coletados fossem divulgados com regularidade para toda a população e a vitória obtida, nos anos 90, com o atendimento a essa demanda.
Nessa trajetória de classificação étnico/racial, importa relembrar que, no Brasil, o primeiro levantamento censitário, em 1872, foi determinado por uma lei tida como golpe fatal ao regime escravo: a Lei Rio Branco, ou como ficou popularmente conhecida, a Lei do Ventre Livre – de 28 de setembro de 1871. Interessados em realizar o “mais relevante levantamento sobre a população escrava” no Brasil, e proceder às medidas de libertação dos cativos, a Lei aponta no seu Artigo 8o que “O Governo mandará proceder à matricula especial de todos os escravos existentes no Império, com a declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um”.
Desde então, e à exceção dos censos realizados em 1900, 1920 e 1970, todos os levantamentos censitários nacionais têm incluído perguntas referentes à cor e à etnia da população brasileira. Em 1910 e 1930 não foram realizados os levantamento censitários. A literatura disponível sobre o assunto informa que a não realização dos censos se deu por problemas de ordem política.
No Censo de 1872 foram utilizadas, além das classificações “livres” e “escravos”, as classificações de cor/etnia branco, preto, pardo e caboclo. No caso da população cabocla, esta incluía os indígenas e seus descendentes. Em 1890, não sendo mais necessário coletar informações sobre o status de livres ou escravos, foram utilizadas as classificações branco, preto, caboclo e mestiço.
Com a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1936, e a realização do primeiro levantamento censitário sob sua responsabilidade, em 1940, as classificações de cor/etnia serão mantidas com as denominações: branco, preto e amarelo. A novidade será a introdução de um espaço em branco reservado à resposta quando fosse impossível determinar a cor do recenseado. Neste caso, os recenseadores optaram por classificações tais como “caboclo, mulato e moreno”. As classificações resultantes da opção em aberto levaram a decisão de agrupá-las em uma única classificação: “pardos”. Data desta época a consolidação do “pardo” como uma síntese das classificações caboclo, mulato, moreno, cafuzo, entre outras denominações tidas como expressões do caráter miscigenado da população brasileira. Finalmente, a única alteração substantiva é a introdução, em 1991, da classificação indígena, consolidando cinco opções de classificação de “cor/raça” no país: branco, preto, pardo, indígena e amarelo.
São essas as cinco classificações clássicas, consolidadas entre os brasileiros nos levantamentos censitários, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e Pesquisa Mensal de Emprego (PME) e que tem ancorado as reivindicações de políticas públicas voltadas à população afro-descendente por todo o país. Ou seja, reivindicações pautadas em um sólido histórico de levantamentos nacionais sobre a “cor/raça” dos residentes no país e, portanto, sem nenhum motivo substantivo para alteração no Censo 2010.
Os rumores sobre as mudanças na coleta e na classificação de “cor/raça”
Em novembro de 2008, uma representante do IBGE presente ao Seminário Censo 2010 y la inclusión del enfoque étnico – Hacia una construcción participativa com pueblos indígenas y afrodescendientes de Amércia Latina, organizado pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), no Chile, anunciou, entre outros destaques, uma significativa – senão decisiva – mudança na forma de coletar as informações sobre “cor/raça” no próximo censo brasileiro. Segundo essa representante, o IBGE já haveria decidido transferir a pergunta relativa à “cor/raça” da população do “questionário da amostra” para o “questionário básico”.
O que isso quer dizer? O processo de recenseamento inclui a utilização de dois questionários – o básico e o da amostra. O “questionário básico” é destinado à coleta de alguns dados junto a todas as pessoas residentes no país – ou seja, ele é o instrumento a ser aplicado a todos os domicílios ocupados.
O “questionário da amostra”, ao contrário, é aplicado apenas a uma parcela das pessoas residentes no país e, como o nome adianta, trata-se do ponto de vista da ciência estatística de uma amostra, um “extrato” do universo. Trata-se, portanto, de um instrumento a ser aplicado a uma fração dos domicílios ocupados. Mas um extrato suficientemente robusto porque substantivamente estratificado para representar de modo adequado o universo da população recenseada.
Além dessas duas distinções sobre a quem toca responder a um e outro questionário, outro diferencial fundamental nos dois instrumentos de coleta tem a ver com o seu conteúdo. Enquanto o “questionário básico” é composto de pouquíssimas perguntas o “questionário da amostra” inclui um vasto e variado conjunto de temáticas traduzidas em considerável número de perguntas. No que diz respeito aos domicílios visitados no Censo de 2000, o “questionário básico” incluiu apenas seis perguntas relacionadas às características dos moradores – a saber: sexo, relação com a pessoa responsável pelo domicílio, mês e ano de nascimento, idade, condição de alfabetização (sabe ler e escrever) e escolaridade (última série concluída).
No caso do “questionário da amostra”, além de todas as perguntas do “questionário básico”, este inclui um amplo conjunto de perguntas sobre característica do domicílio e de seus moradores. Em 2000, as perguntas relacionadas às pessoas residentes no domicílio ultrapassavam sessenta e, como de praxe, as respostas eram condicionadas a situações individuais, tais como a de ser mãe, estudante, empregado, aposentado, entre outras. Através dele é possível obter amplo diagnóstico dos domicílios, das pessoas e das famílias residentes no país – tipos de moradia, condição de ocupação e equipamentos domésticos no domicílio, posição na família, perfil das migrações internas, escolaridade, condição de atividade (emprego, desemprego, aposentarias), rendimento resultante de atividade produtiva ou não, informações sobre gestações, entre outros.
Até o presente, é no questionário da amostra que encontramos a pergunta sobre “cor/raça” da população brasileira. De fato, será no questionário da amostra que iremos encontrar as perguntas relacionadas ao campo da diversidade como, por exemplo: sexo, idade, religião, deficiência, naturalidade, nacionalidade, estado civil, entre outros. Resumindo, o “questionário da amostra” fornece informações importantes para um conjunto imenso de análises sócio-econômicas sobre a população residente no país bem como para o estabelecimento de políticas públicas para essa população.
Tendo isso em mente, a robustez da amostra e sua capacidade de representar o universo da população brasileira nos diversos temas investigados no Censo, que motivo levaria o IBGE a tomar a decisão de retirar a pergunta relativa à “cor/raça” da população do “questionário da amostra”, transferindo-a para o “questionário básico”? Nossa crença é a de que essa decisão não se justifica por outro motivo senão o de provocar problemas na coleta de informações sobre a “cor/raça” da população brasileira.
Outro rumor em torno do Censo de 2010 diz respeito a alterações das classificações de “cor/raça”. Segundo tais rumores, o IBGE estaria pensando em ampliar as classificações disponíveis, tendendo a incluir “matizes” de cor. Os argumentos estariam pautados na consideração de que, pelo país afora, as cinco classificações adotadas até aqui não dariam conta de captar o matiz “miscigenado” da população – ou seja, as classificações “preto” e “pardo” a partir das quais temos conseguido fazer expressar a consciência relacionada à afro-descendência e ao legado de 4 milhões de africanos – homens e mulheres – trazidos como escravos para o Brasil, devem ser alteradas para dar sentido ao vazio da “morenice”.
Isso é o que poderíamos chamar, na linguagem do futebol, de um “tapetão”. Para as organizações do movimento negro e seus ativistas a classificação “pardo” sempre foi um incômodo – pardo são os gatos e papel de embrulho. No entanto, também é verdade que nos últimos 35 anos essas organizações e seus ativistas logram conscientizar a população brasileira, em especial a população negra, de que o fenótipo negro, aquele que indica sem sofisma a herança da escravidão, constitui um dos mais fortes motivos de preconceito, discriminação racial e racismo, e que os indicadores de vulnerabilidade social, econômica, política e cultural de “pretos” e “pardos” são, rigorosamente, os mesmos. Assim, não existem divisões no interior desse grupo que justifique separações, ou negações à sua luta por direitos sociais, econômicos, políticos e culturais.
E, talvez, isso explique, por exemplo, outra importante mudança no padrão de identificação da população brasileira por cor ou raça. Entre 1991 e 2000, as variações em termos da participação relativa da composição da população total, segundo os grupos de cor, mostram que o percentual de população de cor preta aumentou mais de 22%, enquanto o de brancas só se incrementou em 3.5%, e as pessoas autodeclaradas pardas diminuiram em mais de 8%.
Enfim, todos esses dados não são sutilezas. Eles expressam muitos acontecimentos – da ampliação da consciência ao contato com um mundo globalizado que nos informa, a cada dia com mais vigor, as lutas contra a discriminação étnico/racial em todos os continentes. Nesse contexto, de emergência do debate sobre a má distribuição dos recursos simbólicos e políticos, em nível planetário, é ingênuo pensar que mudanças apresentadas às pressas e com intuito de frear esse sentido de consciência e conscientização possam ser estancadas dessa maneira.
É tempo de alerta. Não se pode correr o risco de perder tudo o que se conseguiu construir como série histórica de indicadores sobre o perfil das desigualdades sócio-econômicas que os levantamentos censitários, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e Pesquisa Mensal de Emprego (PME) nos fornecem de forma fidedigna. Quebrar essa série histórica é uma aventura sem limites. O Censo está aí e talvez seja o momento adequado de, mais uma vez, lembrar e atualizar a campanha, desenvolvida durante a realização do Censo de 1991, “Não deixe sua cor passar em branco – Responda com bom c/senso”.
Àquela época a Campanha listou três objetivos sensíveis, a saber:
- Sensibilizar pessoas de origem africana a declarar sua cor a partir do referencial étnico;
- Contribuir na construção de indicadores nacionais sobre as condições sócio-econômicas da população de origem africana;
- Fazer veicular uma mensagem positiva da população de origem negra tendo em vista a recuperação de sua auto-estima cultural e política.
Ao que tudo indica, em 2010, vamos ter a oportunidade de acrescentar ao menos mais um: assegurar que o combate ao preconceito, à discriminação racial e ao racismo seja um objetivo permanente de uma sociedade que deseje ser justa, democrática e anti-racista.
* Historiadora, pesquisadora de relações de gênero e relações raciais. Atualmente atua como consultora permanente da Comissão de Diversidade da Petrobrás.
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