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Joaquim, o missionário do financiamento comunitário .
Por Sílvia Lisboa
Na primeira semana vivendo entre catadores, em um lixão de Fortaleza, João Joaquim de Melo Neto Segundo soube que dali em diante todas as suas escolhas estariam ligadas àquela iniciação radical. O seminarista de 18 anos havia há pouco deixado a casa dos pais em Belém do Pará e aceitara com um misto de resignação e civismo a missão a ele incumbida por Dom Aloísio Lorscheider, o cardeal da época, de viver em uma favela. Em 36 semanas dormindo em um barraco, sempre inebriado com o forte cheiro de comida putrefata, Joaquim viu o homem perder a distinção da espécie. Ali, onde ser humano, animal e lixo eram um só, decidiu que dedicaria sua vida para debelar a pobreza.
Anos mais tarde, já formado em Teologia, essa escolha feita quando ainda adolescente o levou a renunciar à vida eclesiástica poucos meses antes de ser ordenado padre. Para a maioria dos celibatários, a ajuda aos desvalidos era parte do ofício de um religioso. Mas, para Joaquim, era a própria religião. Como sacerdote, pensou, teria de melhor dividir as horas dedicadas às missas e confissões no Conjunto Palmeiras – local onde morava desde que deixara o lixão, um bairro em que 25.000 pessoas viviam sem água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. Optou por dedicar todo o seu tempo de leigo para mudar a realidade do conjunto, que acabou se transformando na sua própria casa. A tarefa no Palmeiras, também confiada por Dom Aloísio, era ajudar os moradores a alcançar as mínimas condições de sobrevivência.
"Eles precisavam se organizar para lutar, para conseguir o que eles não tinham, e eles não tinham nada. Mas, sem ajuda, pessoas nessas condições não conseguem se unir. Então, comecei o trabalho organizando o movimento chamado ‘Habitando o Inabitável’’’, conta ele, que deixou a confortável casa dos pais para ingressar no seminário.
A experiência no Conjunto Palmeiras, que culminou na criação do primeiro banco comunitário do Brasil, era o motivo da sua presença no Fórum Social Mundial (FSM) 2010, em Porto Alegre, naquela manhã abafada de quarta-feira. Joaquim usava jeans e uma camisa social bordô, presa na cintura por um cinto preto largo que franzia as calças e expunha uma magreza mantida aparentemente sem sacrifícios. Era o único entre os palestrantes do provocativo painel “Economia e Gratuidade” que tinha um testemunho prático a dar. O recifense de 47 anos começou a falar da criação do Banco Palmas no púlpito, como os colegas de bancada. Mas logo desceu do palco improvisado em um dos galpões do cais do porto da capital gaúcha. Sentia-se melhor estando na mesma altura de plateia, hábito adquirido nos tempos em que evangelizava nas favelas. Sua fala, porém, não guardava qualquer semelhança com os sermões monocórdios dos padres. Tampouco o conteúdo.
"Para criar uma comunidade cooperativa é preciso enfrentar a força de uma sociedade baseada no ódio e na competição, reforçada pelo Big Brother. Todo dia eu ligo a televisão e escuto a frase: ‘Quem você vai eliminar hoje?’ São 24 pessoas dentro de uma casa tentando eliminar o outro", disse e sorriu, satisfeito de ver risos e cabeças balançando em aprovação na plateia.
No Conjunto Palmeira, sede do Banco Palmas, Joaquim instituiu uma lógica oposta à do Big Brother. Era final dos anos 80, quando fundou a primeira associação de bairro da comunidade. Conseguiu conscientizar as pessoas de que era preciso união e espírito colaborativo para melhorar as condições de vida. Ao longo de uma década, graças a passeatas e movimentos de pressão organizados por ele, o conjunto habitacional ganhou luz, saneamento básico, um posto de saúde, creche, uma praça e asfalto. Na metade da década de 90, transformara-se em um bairro urbanizado. Mas algo permanecia preocupantemente imutável. Seus moradores continuavam pobres. O progresso criou um paradoxo: a própria comunidade que se orgulhava da inscrição no centro da praça “Deus criou o mundo, e nós construímos o Conjunto Palmeiras”não tinha condições de pagar o IPTU. Enquanto muitos partiam em debandada, Joaquim saía pelas ruas do bairro questionando: “Perguntava para todo mundo por que éramos pobres. Em geral, todos diziam a mesma coisa: porque não temos dinheiro. Mas essa resposta era tão óbvia que não podia ser verdade”.
E não era, ele logo descobriu. Um levantamento do consumo no bairro, capitaneado por ele, mostrou que os moradores gastavam, por mês, R$ 1,2 milhão em compras de alimentos, roupas e produtos de limpeza. Um montante nada desprezível considerando a renda rarefeita que ali circulava. O problema era onde ia parar todo esse dinheiro. A resposta era a chave para entender a penúria do Palmeira: cada centavo gasto acabava na mão de grandes supermercados ou em shoppings, onde em geral as pessoas fazem suas compras. Ou seja, a comunidade era pobre porque perdia todo o dinheiro suado do final do mês, concluiu.
Em janeiro de 1998, Joaquim juntou R$ 2 mil e criou o Banco Palmas. Criar um banco era a única forma de fomentar o empreendedorismo e estancar a sangria de divisas, pensou o líder comunitário, debruçado sobre livros de economia solidária de Paul Singer, o secretário de Lula. O Palmas nasceu baseado na máxima de que não há desenvolvimento sustentável que não seja endógeno. “Era preciso quebrar a lógica da competição em que um ganha e o outro perde. Era preciso reorganizar o território para que ele se tornasse colaborativo” explicou, em tom professoral e cadenciado, durante a entrevista às margens do Rio Guaíba.
A nova filosofia exigiu a criação de um mapa de produção do Palmeira que mostrava as chances de um negócio prosperar sem prejudicar ninguém ao redor. Cruzando os dois mapas, o da produção e o do consumo, Joaquim conseguia avaliar “se a tapioca da Dona Maria tinha chances de sucesso”. Em caso positivo, Dona Maria estava autorizada a pegar um empréstimo do banco sem precisar apresentar garantias. A operação se tornava pública quase que instantaneamente. Seu nome ia parar no site do banco. "Nada melhor do que o vizinho para dizer se a Dona Maria que quer montar uma banca de tapioca sabe fazer tapioca mesmo", exemplificou.
O banco do teólogo, que se auto-intitula um sócio-economista popular, deu tão certo que hoje o Palmeiras abriga 240 pequenos negócios. Joaquim calcula que cerca de 30% dos R$ 1,2 milhão antes gastos fora das fronteiras do bairro circulam agora dentro do conjunto. Mesmo aqueles que não querem investir em um negócio próprio são estimulados a comprar das empresas do bairro. E com vantagens. Quem compra na Palma Fashion, a grife da camisa bordô que Joaquim vestia na palestra do FSM, ganha 5% de desconto com o Palma Card, o cartão de crédito local. Dentro do bairro, os reais perdem espaço para os “palmas”, a moeda caseira criada para garantir o PIB da comunidade. “Os palmas são aceitos em todo o comércio do bairro e não saem dali. É a forma de o dinheiro não fugir do bairro”, descreve Joaquim, destacando com a mão esquerda a etiqueta com inscrição “Palma Fashion” da camisa.
A fórmula bem-sucedida do Banco Palmas está hoje replicada em 51 bancos comunitários brasileiros, presentes em nove estados. Joaquim quer criar 1 mil até final de 2012 e agora luta pela aprovação de uma lei em tramitação no Congresso, que estabelece o marco legal dos bancos comunitários. Hoje, esse tipo de instituição opera à margem do sistema bancário oficial e não pode realizar operações básicas, como manter uma poupança. Apesar da demora em aprovar a lei, a experiência dos bancos comunitários brasileiros inspiraram a criação de iniciativas semelhantes na Venezuela, no Equador e em países africanos. A cada seis meses, Joaquim viaja a Caracas para dar consultoria aos venezuelanos envolvidos com a gestão de 3,6 mil bancos populares, que representam 64 vezes mais que o número do país que serve de inspiração.
Depois da palestra do FSM, Joaquim não teria tempo para dar entrevistas. Havia se comprometido em chegar ainda na noite de quarta-feira a Fortaleza para ajudar a estudante americana que está fazendo um mestrado sobre o Banco Palmas. A aluna da Universidade de Columbia saiu da gélida Nova York para a calorenta Fortaleza disposta a avaliar o impacto social e econômico do banco comunitário. A conclusão do estudo pode ser decisiva para aumentar o interesse de investidores nos bancos, que, apesar da sua lógica outsider, dependem de um capital para deslanchar. Nesse momento, a explicação do recifense se torna semelhante a um discurso que poderia levá-lo ao Fórum de Davos. “Nós precisamos que as empresas do Palmeiras invistam em tecnologia e inovação. Hoje o que temos é muito artesanal. É preciso criar escala e investir em métodos ambientalmente responsáveis que aumentem o valor agregado dos nossos produtos”, disse, respondendo à pergunta sobre o que faltava no desenvolvimento do bairro.
Apesar do sucesso do Banco Palmas – que já lhe rendeu a indicação para o prêmio de Transformadores, na categoria Desprendimento, da revista Trip, e a indicação ao Prêmio Empreendedor Social 2009, do jornal Folha de S.Paulo –, Joaquim não deu a pobreza por vencida. A renúncia ao celibato foi a primeira de uma série de sacrifícios em prol da causa. A outra é a opção de não ter filhos. O esforço para subverter a lógica da competição “é tão grande”, explica, que seria “mais responsável não procriar”. Do casamento, porém, não abriu mão. Mas tudo indica que não foi preciso investir muito esforço na conquista.
As duas mulheres da sua vida são moradoras do Palmeira e tão envolvidas com a comunidade como ele. A primeira presidia a associação de moradores do bairro antes de se engajar no movimento feminista que a fez trocar Fortaleza pela Europa. A segunda e atual é Sandra Magalhães, 38 anos, coordenadora de Relações Institucionais do Banco Palmas, criada no Palmeira, a quem Joaquim chama carinhosamente de “minha baiana transgênica”, referindo-se ao penteado rastafári com fitas coloridas que a mulher exibe no cabelo. A rotina de viagens de Sandra é tão intensa como a do marido. Esse é um dos motivos que ela aceitou, sem grandes dramas, abrir mão da maternidade. Quando questionado sobre as dificuldades de manter a palavra, o marido responde: "Nosso filho é a humanidade".
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