O negro no topo intimida


Edson Lopes Cardoso
edsoncardoso@irohin.org.br
Comentando o filme “Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei”, Marcelo Coelho, articulista da “Folha de S. Paulo”, disse que, nos anos 60, a imagem de um negro no topo da pirâmide social intimidava os brasileiros ( edição de 03.06.2009).

Por que se assustavam os brasileiros, o que temiam ou receavam? Parece natural supor que os brasileiros que estavam no topo da pirâmide receassem simplesmente ficar fora dele. Deixar o topo da pirâmide social deve ser mesmo uma coisa assustadora.

Isso foi há cinqüenta anos, mas há evidências de que o referido temor não tenha ficado restrito ou localizado na década de 60 do século passado. “É esse debate alarmado e alarmista, pautado pelo racismo científico do século XIX, que acompanhamos ao longo desse livro”. Estas são palavras de Célia Maria Marinho de Azevedo, no Posfácio à 2ª edição do indispensável “Onda Negra, Medo Branco” (Annablume, 2004). Onda negra que se forma, na visão de senhores de escravos no século XIX, a partir das “ações anárquicas da ‘gente de cor’, as quais pretendem nivelar a sociedade com seu desrespeito à hierarquia social, à família, à propriedade” (p. 246).

O deputado federal Ìndio da Costa (DEM-RJ) participou do grupo de trabalho que discutiu reforma eleitoral na Câmara dos Deputados. Sua reação enfática à sugestão de inclusão do quesito cor/raça no projeto de lei então em elaboração baseou-se no argumento de que, se houvesse identificação da cor/ raça dos candidatos, os negros em seguida reivindicariam cotas na representação partidária. Uma reivindicação, como se sabe, que é expressão de desrespeito à hierarquização social e política. Com exceção de dois votos femininos, seu conselho de prudência foi acatado pelos demais parlamentares.

No dia 16 de junho, o deputado Carlos Santana (PT-RJ) encaminhou, por sugestão do Ìrohìn, uma indicação (INC 4349/2009) ao Tribunal Superior Eleitoral, propondo a introdução do quesito cor/raça, nos termos adotados pelo IBGE, nos formulários de registros de candidaturas eleitorais, e a ampla divulgação de informações sobre candidatos e eleitos, segundo cor/raça, a toda a sociedade brasileira.

É um caminho possível e o ministro Carlos Ayres Britto, presidente do TSE, expressou ao deputado Carlos Santana, a Regina Adami, Graça Santos e ao representante do Ìrohìn seu interesse em discutir o processo de afirmação identitária no campo da política. Quantos negros, quantos índios se candidatam? Quantos se elegem?

A omissão, no registro das candidaturas, da cor dos candidatos é reveladora dos limites da democracia no Brasil. É expressão da dominação racial no campo da política e os partidos não parecem dispostos a negociar nada que possa alterar os desequilíbrios de poder entre brancos e não-brancos.

Em março, comentei no site do Ìrohìn (www. irohin.org.br) resultado de pesquisa do Ibope, segundo a qual “77% dos entrevistados afirmaram que votariam em um homem negro e 75% elegeriam uma mulher negra para qualquer cargo público, número maior dos que votariam em mulheres de qualquer raça”.

A pesquisa ilustrava a existência de pessoas dispostas a votar em candidatos que, a rigor, não existem. Semelhante concepção da identidade política poderia parecer estranha, mas o fato é que a mobilização política do negro passa mesmo ao largo dos partidos.

Se existe um critério objetivo para avaliar a abertura partidária para o tema da luta contra o racismo e a superação das desigualdades raciais, a partir do início dos anos 80, esse critério é a composição étnico-racial das bancadas federais, estaduais, municipais.

Pesquisa realizada pela revista Época e o Instituto FSB com 247 congressistas incluiu uma questão sobre a representatividade do negro no Congresso Nacional: Muito alta - 0,4%; Alta - 3,3%; Mediana - 16,7%; Baixa - 47,3%; Muito baixa - 32,2% (Época, edição de 6 de julho de 2009, nº 581, p.44). Embora cerca de 80% dos parlamentares considerem que o negro está mal representado no Congresso Nacional, isto não significa que estejam dispostos a alterar o grave quadro de exclusão. A argumentação do deputado Ìndio da Costa, como vimos, só encontrou a resistência de dois votos femininos e as mulheres são apenas 7% dos parlamentares.

Na noite da quinta-feira 29.05.2009, em intervalo do “Jornal Nacional”, da Rede Globo de Televisão, foi ao ar mais um programa do Partido dos Trabalhadores. Eram claros todos os personagens que tinham expressão partidária, institucional ou sindical. Eram escuros os representantes do povo agradecido e o apresentador do programa.

No “governo de todos”, a parte que representa o todo é clara. Os escuros, emocionados e dramáticos, agradecem as benfeitorias. O programa do partido mais “popular e democrático” tem a força da evidência que nenhuma manipulação verbal pode ocultar. Os negros não são visíveis nas propagandas partidárias, nem o são também no Congresso Nacional, em Assembléias e Câmaras. Menos ainda nos cargos executivos.

A pesquisa do Ibope revela uma dinâmica acentuada de parte da sociedade brasileira, que coexiste com persistentes limitações no seio dos partidos e nas estruturas do Estado quanto às formas de representação da diversidade étnicoracial. O negro é dimensão do eleitorado a ser levada em consideração ( na TV os apresentadores - modelos e atores - e o povo agradecido ou indignado expressam os limites da preocupação com o voto), mas deve ser excluído da participação política que lhe permitiria acesso ao poder. Como dizia Lima Barreto, em seu “Diário Ìntimo” (p. 82), “É singular essa República”.

Nenhum comentário: