O Belo Horizonte da capital mineira brilhava em sol escaldante naquele primeiro sábado de fevereiro. Munidas de seus biquínis, protetor solar, esteiras, cangas, bóias e outros apetrechos, as moças de Minas, conhecidas pela sua beleza, foram curtir mais um dia de praia. Saindo de várias partes da cidade, se dirigem até a Praça da Estação. É tradição secular mineira pegar o trem que sai dali para o litoral capixaba. No último mês, porém, o trajeto não precisa ser percorrido. A praia é na Praça.
Desde o dia em que o prefeito da cidade, Marcio Lacerda, soltou o decreto proibindo qualquer evento naquele espaço, Belo Horizonte viu nascer a mais criativa, irreverente e envolvente rebelião dos últimos anos. O decreto nº13.798 tem apenas uma frase: "Fica proibida a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, nesta Capital" (DOM 2010). Uma frase que vem causando muita confusão. Por quatro sábados seguidos jovens se banharam na praça para promover uma verdadeira desobediência civil, lírica, lúdica, bela, ousada e singela. Uma alegre forma de se encontrar e de uma geração inventar novas formas de lutar.
A Praça que viu milhões pedirem Diretas Já e cantarem Lula-lá, não aceitou se calar. Se espreguiçando e sambando, sem lenço, nem documento a galera tomou conta do pedaço. Lutando com novas armas, se mobilizando pelo twitter, lançando manifesto em blogs, se comunicando por sms, postando vídeos no Youtube. Em comum com a geração dos pais, os cabelos longos, as barbas mal feitas, as cangas coloridas, o violão que de vez em quando entoa as mesmas canções de esperança de outrora geração.
Não-praça
A justificativa apresentada pela Prefeitura é que a publicação do decreto visa preservar o bem público. Um argumento que só serve para alguém que não conhece o local, pois a Praça sofreu uma grande reforma no início da década, onde criou-se um amplo vazio, uma quase não-praça, justamente para abrigar grandes eventos, como prova o decreto publicado em 2001, época de sua re-inauguração. Texto diz: "a revitalização do espaço público, dotando-o de infra-estrutura adequada para manifestações culturais com grande aglomeração de pessoas" (DOM de 2001).
O lado autoritário do prefeito de Belo Horizonte, que ficou conhecido na campanha de 2008 quando disse ter vontade de pisar no pescoço dos adversários, voltava à tona. Acostumado com a vida empresarial, jamais pensaria Lacerda que tal atitude geraria tanta revolta. No meio da semana passada, o mandatário teve que anunciar um recuo. Como de praxe, montou uma burocrática comissão para analisar o caso. Entre os membros, nomes da administração sem um único representante da sociedade civil, o que se tornou mais um motivo de atrito com os manifestantes.
Urbanidades
Antes das manifestações, conta o jornalista Luther Blissett, um coletivo já se reunia mensalmente embaixo do Viaduto de Santa Tereza para debater entre outros papos a ocupação dos espaços urbanos. “Realizávamos alguns encontros aqui na Praça da Estação e este ano descobrimos a proibição imposta pelo decreto”. O resto da história nem precisou contar.
Para uma jovem que protege o corpo branco com uma canga colorida, a medida do prefeito só vem piorar a cena cultural de BH que é carente de locais de exibição e aglomeração. “Belo Horizonte falta espaço para eventos e a Prefeitura acaba com este. A verdade é que criamos um grande encontro cultural aqui na Praia da Estação. Todo sábado tá rolando algo de novo. Sábado passado teve uma roda de capoeira, hoje contamos com a presença de uma escola de samba”, conta a jovem que também se chama Luther Blissett.
A escola de samba em que se refere é a Cidade Jardim, a mais tradicional do carnaval belo-horizontino. Não por coincidência, os foliões estavam ali também naquele sábado. A Escola tem sido perseguida pela Prefeitura nos últimos anos e conhece bem o lado repressivo da administração. A agremiação foi despejada da sua própria quadra que ocupa há mais três décadas. “Nós também consideramos um absurdo este decreto”, diz o diretor da Escola, Eric Maciel. “Estamos aqui para lutarmos juntos, esta galera que está batendo tambor também é prejudicada por este autoritarismo”. “A Praça é do Povo”, completa o carnavalesco Eric Maciel.
Praia mineira
Mesmo quem já percorreu areias banhadas por muitos oceanos se surpreende com a beleza daquela Praia criada em cima daquele concreto. “É a melhor praia que já fui em minha vida, e olha que já conheço muitas”, conta o professor de geografia Léo Dasantiga. Um pouco acima da fase etária predominante no protesto, ele justifica “só fica velho quem quer” e completa, “temos que cobrar nas próximas manifestações é a areia, que é obrigação do prefeito, pois ele que criou esta situação”, discursa em voz alta o professor, que concluiu “eu estou aqui só porque é errado”.
Quando o sol esquenta pra valer os miolos, uma jovem com um chapéu de praia começa a recolher tostões dos banhistas para contratar um caminhão pipa e refrescar a galera. Em poucos minutos, os 150 reais estão na mão e em outros minutos estaciona na Avenida Andradas, que margeia a praia, digo Praça, o mar belo-horizontino em forma de um caminhão tanque. Este esforço não seria necessário se não fosse a pequenez do prefeito Marcio Lacerda, que desde o primeiro protesto suspendeu o funcionamento da fonte que fica ligada habitualmente.
Mar caipira
Quando todos se preparavam para um mergulho, eis que surgem dois policiais militares. Os comedidos banhistas, no intuito de manter o caráter pacífico do manifesto, resolvem não ir para o confronto e pedir ao motorista que dê uma volta no quarteirão para despistar os oficiais. Plano cumprido e logo jorrava água da mangueira em direção à multidão que eufórica recebia a água como se estivesse no Deserto do Sahara.
E para quem pensava que nesta manifestação irreverente não existem as palavras de ordem, escutem estas pérolas guardadas de cabeça pela reportagem, pois o bloco de papel com a caneta ficou longe para que o repórter também se refrescasse naquelas águas. “Eh polícia, a praia é uma delícia”, “Salvador é paia, quem foi que disse que mineiro não tem praia?”, “Ei Lacerda, seu decreto é uma merda”.
O jagunço Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, ensinava que o “real não está nem na saída, nem na chegada. Ele se coloca pra gente é no meio da travessia”. Parece que para aqueles jovens pouco importa o destino do maldito decreto. O que importa é a forma nova de luta e de vida que Belo Horizonte experimenta. Até mesmo porque eles já são vitoriosos, A PRAÇA NUNCA FOI TAO LIVRE!!!!!
Aviso aos navegantes: Para os desavisados que não entendem porque alguns os personagens desta reportagem têm o mesmo nome, saibam que os organizadores, que não aceitam esta definição também, preferem se identificar com o “pseudônimo coletivo“ de Luther Blisset. O pseudônimo multi-usuário surgiu na europa na década passada e serviu de inspiração para os mineiros. Na página do personagem no Wikipedia, ele é assim definido: “uma identidade em aberto, adotada e compartilhada por centenas de hackers, activistas e operadores culturais em vários países, desde o verão de 1994”.
De Belo Horiozonte,
Luther Blissett
Um comentário:
parabens aos jovens mineiro e fica ai a liçao pra galera que pensa que a juventude de hoje só se preocupa com funk e 'baixaria'
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