Cinema feito por índios cresce e se consolida no Brasil


Diretores falam sobre o trabalho, que só é possível graças ao projeto Vídeo nas aldeias, de Vincent Carelli

Walter Sebastião - EM Cultura
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Vincent Carelli/Divulgação
O diretor Zezinho Yube, de 27 anos, tem várias obras, inclusive premiadas

Existe um cinema novíssimo: os filmes feitos pelos cineastas indígenas. São documentários sobre o cotidiano das aldeias, memórias das comunidades, eventos importantes das tribos. Que vêm recebendo prêmios no Brasil e no exterior. Movimento que, no Brasil, data do fim dos anos 1990 e teve como berço o projeto Vídeo nas aldeias. Mas, no mundo, surgiu a partir do fim dos anos 1970, com trabalhos na Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Alasca, México, Bolívia, realizados basicamente pela primeira geração de índios que frequentou a escola, a cidade e a universidade.

Kene Uxi, As voltas do Kene acaba de ganhar menção honrosa no Forumdocbh, importante mostra mineira dedicada ao cinema documental. O diretor do filme é Zezinho Yube, de 27 anos, da comunidade huni kui, território indígena Praia do Carapanã, aldeia Mibayã, no Rio Tarauacá, Acre. Agente agroflorestal, ele já realizou, desde 2005, quatro outros filmes: Novos tempos; Manã Bai, A história do meu pai; Katxa nawa, Festa da fertilidade; Já me transformei em imagem. Em dezembro, começa a edição de A festa da iniciação. Todos com trechos no YouTube.

“O prêmio é reconhecimento do nosso trabalho. Temos muitos cineastas e filmes de qualidade. Está crescendo o espaço para realizadores indígenas”, conta Zezinho Yube. O cinema, para ele, é ferramenta de comunicação e expressão, com significado político, que tem proporcionado intercâmbio entre as aldeias. “Estamos fazendo trabalho de revitalização cultural”, afirma, satisfeito em ver revalorizadas festas e pinturas corporais, além do orgulho de ser índio, entre outras coisas. Sua obra é toda documental e já foi exibida em Nova York, no Museu do Índio, e em Washington (EUA).

Zezinho conta que, às vezes, pensa em realização de obra de ficção baseada na história de seu povo. Está trabalhando com o irmão em projeto de criação de ponto de cultura, visando à aquisição de equipamentos. Desafio posto aos cineastas, para o diretor, “é resistir, com a nossa cultura, a nossa língua, do jeito que somos, a um entorno que quer nos dominar, nos manipular”, explica o fã de Glauber Rocha.

Missões Ariel Ortega tem 24 anos, é guarani, nasceu em Missiones (Argentina). Mora em Jacuí (RS), é professor bilíngue, tem trabalho com jovens. Já dirigiu o curta Nós e a cidade e um média-metragem premiado: Duas aldeias, uma caminhada. Está realizando mais dois filmes, um sobre a espiritualidade (que, observa, é característica de seu povo) e outro sobre as missões jesuítas, onde existe uma grande aldeia que, além do Brasil, chegava ao Paraguai e à Argentina.

“Os filmes trazem nosso ponto de vista, a sabedoria dos guaranis e fortalecem a nossa cultura”, observa Ariel. Conta que, desde criança, está acostumado a ver brancos filmarem índios – “é sempre tudo feito rápido”. Avisa que as crianças precisam ver os filmes dos cineastas indígenas até para não chegarem à aldeia imaginando que se vive hoje como há 200 anos. Sonhos? “Um grande filme sobre a criação do mundo segundo os guaranis”, conta. Superprodução? “Sim”, responde, contando que vários, nas aldeias, têm jeito de ator. A obra teria narração do avô Dionísio Duarte, até hoje, aos 82 anos, considerado o cacique geral dos Mbya.

O que ver

• Coleção de DVDs Cineastas indígenas: antologia da produção de autoria indígena dos últimos 10 anos.

• Índios do Brasil : Dez programas para TV, apresentados por Ailton Krenak, mostrando como vivem e o que pensam os índios de nove povos (entre eles os maxacalis, de Minas, disponíveis para download.

• O programa A’Uwe exibe filmes de vários núcleos de produção indígenas. Domingo, às 18h30, na Rede Minas.

Projeto Vídeo nas aldeias registra a memória de olho no futuro


Walter Sebastião - EM Cultura
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Vincent Carelli/Divulgação
O cineasta guarani Ariel Ortega durante filmagens de Duas aldeias

Formando cineastas e produzindo os filmes dos diretores indígenas está o projeto Vídeo nas aldeias. A pessoa responsável por acervo de 70 títulos (entre 1987 e 2010), metade deles de realizadores nativos, é Vincent Carelli. Ele tem 58 anos, é filho de mãe francesa e pai brasileiro, atua há 40 anos como indigenista. É o diretor do premiado Corumbiara. “O que realizamos é parte ínfima de um Brasil desconhecido, que precisa ser revelado. Não fico olhando para trás. Minha preocupação é com os próximos 100 filmes a serem feitos”, afirma, defendendo ampliação das oficinas de formação.

“O cinema feito pelos índios é um fato político, mas sensibiliza pelo seu valor cinematográfico”, explica Carelli. “São atos de aproximação, de intimidade, que colaboram para sairmos do quarto escuro da ignorância”, acrescenta. Colocar equipamentos nas mãos dos índios, ele afirma, muda tudo: o foco de interesse, o que se filma e como se filma. “Cada obra tem a marca de um povo”, observa. “É olhar de dentro, comprometido com o desejo coletivo das comunidades de fazerem esses filmes e com a proximidade do universo indígena”, explica. Aspecto que, para muitos (como o antropólogo Levi-Strauss) traz o encanto às obras.

Estilo próprio O Vídeo nas aldeias surgiu da demanda por registro de memória e necessidade de visibilidade para as lutas das comunidades. De 1987 a 1997, conta Carelli, sua câmara ficou a serviço dos índios (é o diretor do premiado Corumbiara). Realizações coletivas chegaram a TVs universitárias e uma avaliação mostrou que era preciso realizar oficina de formação de cineastas. “Desde a primeira oficina surgiram trabalhos importantes, com estilo próprio. Com o tempo, os trabalhos ganharam maior consistência”, recorda. Considero que é preciso ampliar atividades, pois essa é a única forma de mostrar a diversidade de culturas indígenas.

Nos filmes estão, aponta, transformações profundas, apresentadas “de forma densa, com sensibilidade e dando o seu recado”. Estão em cena a colonização do Brasil, o genocídio dos povos indígenas (“sobre o qual todos sabemos, mas fazemos vista grossa”) e luta para que as comunidades tenham seus direitos. Há um público que Vincent Carelli gostaria de atingir especialmente: “Os mais jovens. Quanto mais cedo eles tiverem informação de qualidade sobre os índios, melhor”. Atividade comemorativa dos 25 anos será uma coletânea de filmes para crianças, com sete títulos, cinco já prontos.

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