Tribunal Popular debate avanço da militarização da segurança



Operações policiais no Rio, o posto de terceira maior população carcerária do mundo e a criminalização dos movimentos sociais são exemplos cotidianos da guerra à pobreza



Luciana Araujo

De São Paulo (SP)

As operações policiais nas comunidades da Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, o posto de terceira maior população carcerária do mundo e a criminalização dos movimentos sociais são exemplos cotidianos do avanço da remilitarização da segurança pública no Brasil, na esteira do avanço do neoliberalismo. No seminário Encarceramento em massa: símbolo do Estado penal, com a participação de cerca de 450 pessoas, foi discutida a relação dessa política com o aprofundamento da histórica segregação social brasileira e o estímulo à indústria do controle do crime. O evento aconteceu de 7 a 9 de dezembro no salão nobre da Faculdade de Direito da USP, promovido pelo Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus, articulação de entidades e movimentos que desenvolve atividades de resistência e solidariedade às vítimas da violência estatal.

O ex-secretário de Polícia e ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Nilo Batista, destacou que “nunca o sistema penal participou tanto da acumulação capitalista como agora”. Nilo participou da mesa de abertura do seminário junto com a socióloga Vera Malaguti e a defensora pública Carmen Silvia Moraes de Barros.

“Atrás de todo choque de ordem tem sempre um deslocamento de economias informais populares para as economias formalizadas de grandes empresas, e também a indústria do controle do crime”, ressaltou.

Nesse momento, poucas semanas após o início das operações policiais nas comunidades cariocas controladas pelo Comando Vermelho, multinacionais como a Phillips, Procter & Gamble e outras já discutem instalar novas plantas no Rio. As indústrias têm recebido incentivos fiscais dos governos federal, estadual e municipal – caso da P&G, que obteve redução do IPTU e do ISS e se estabelecer na região da Cidade de Deus em 2009. A evolução do arsenal bélico exibido pelos traficantes e agentes do Estado também evidencia a lucratividade dessa ‘guerra’ urbana para indústria armamentista. ‘Guerra’ que teve início há quase 20 anos no Rio de Janeiro e não acaba nunca porque os verdadeiros responsáveis pela entrada de armas e drogas no país, e sua relação com a estrutura do Estado, não são enfrentados.

Somente a pobreza vem sendo atacada, pela via militar, para assegurar que a cidade esteja “preparada” para receber a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

“O Rio de Janeiro está vivendo, para que fluam os negócios olímpicos transnacionais, um verdadeiro massacre das favelas”, denuncia a socióloga e secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia, Vera Malaguti.

Para Vera, as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são parte de um projeto que transforma as favelas em “campos de concentração” altamente militarizados, cuja população é absolutamente controlada e há mortes em série. Ela criticou duramente o anúncio feito pela presidenta eleita, Dilma Rousseff, de expandir o modelo das UPPs para todo o país no próximo governo.

A “guerra ao crime” e o extermínio dos pobres

O Brasil tem hoje quase 500 mil presos amontoados em menos de 300 mil vagas. De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, 60% dos detentos são negros, 58% têm entre 18 e 29 anos e 44% ainda aguardam julgamento (são presos provisórios). “É um encarceramento em massa da pobreza, porque não há notícia de encarceramento das elites”, destaca o juiz e presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal, Juarez Cirino dos Santos. Na mesma mesa, o também juiz e integrante da Associação Juízes pela Democracia (AJD) Rubens Roberto Rebello Casara avalia que “perdemos o pudor de praticar ilegalidades contra as camadas mais pobres da sociedade brasileira” e que “não cabe falar em guerra, que pressupõe baixas nos dois exércitos: o que está acontecendo no Rio é extermínio”.

A reportagem tentou obter o levantamento consolidado das mortes, prisões e apreensões realizadas junto à assessoria de imprensa da Polícia Militar do Rio de Janeiro desde o dia 21 de novembro. A orientação foi procurar a 21ª Delegacia Policial. Lá, a informação foi de que os dados não estão disponíveis. A reportagem foi orientada a encaminhar um documento solicitando ao delegado chefe a divulgação de números que deveriam ser públicos. Até o fechamento deste texto a Secretaria de Segurança Pública não divulgou o número de mortes ocorridas nos dias 21 a 24 de novembro.

As famílias denunciam o arrombamento de residências, furto de pertences e ameaças em todas as comunidades onde há ações do ‘choque de ordem’.

Em São Paulo, à criminalização das periferias soma-se a ação estatal que potencializa as dificuldades para que essa parcela da população tenha condições mínimas de acesso ao Judiciário. O Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado dispõe de apenas 45 defensores para atender a uma população de quase 180 mil presos. E o Judiciário atua como “justiceiro social” na opinião da coordenadora do Núcleo, Carmen Silvia.

A situação se complica para os portadores de doenças mentais, mulheres e adolescentes. Depósitos de seres humanos como o Hospital de Custódia de Franco da Rocha seguem em funcionamento. As mulheres e mães dos presos são aviltadas durante as visitas e discriminadas pela sociedade. E as internas das instituições socioeducativas, embora representem apenas 4,5% da população jovem privada de liberdade, chegam a índices de 80% de medicalização nas unidades – como verificado no Estado da Bahia pela advogada Jalusa Arruda.

Tudo somado, a evidência de um Estado penal em vigor no Brasil é cabal. Na tentativa de combater esse modelo, as entidades e movimentos que se articulam no Tribunal Popular decidiram realizar novas atividades no ano que vem, incluindo um ato no Complexo do Alemão em janeiro. Também será organizado um Tribunal Popular da Terra, para discutir como a não realização da reforma agrária no país potencializa a criminalização da pobreza e a segregação social.

O sistema penal brasileiro em números

494.598 pessoas presas

299.587 vagas existentes em todo o país

57.195 pessoas cumprindo pena em delegacias

60% dos detentos são negros

58% têm entre 18 e 29 anos

44% são presos provisórios (prisões em flagrante, preventivas, temporárias aguardando julgamento)

41% cometeram crimes patrimoniais sem violência ou relacionados às drogas

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), dezembro/2010

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