"O tráfico é o maior interessado na proibição das drogas"



Guerra às drogas é um pretexto para ampliar controle social sobre comunidades, afirma ativista




Renato Godoy de Toledo
da Redação

Para Júlio Delmanto, mestrando em história social e membro do Coletivo anti-proibicionista DAR (Desentorpecendo a Razão), o pano de fundo para as ações militares no Rio de Janeiro são os eventos esportivos que ocorrerão na cidade em 2014 (Copa do Mundo) e 2016 (Olimpíadas). O DAR é um dos organizadores da Marcha da Maconha que vem sendo sistematicamente proibida pela Justiça. Delmanto fala sobre a guerra às drogas e às restrições à liberdade de expressão dos anti-proibicionistas em entrevista abaixo.

Brasil de Fato - As ações recentes no Rio de Janeiro parecem ter como finalidade - ao menos tentam passar essa impressão - o fim de todas as drogas, com a apreensão e incineração de toneladas de substâncias ilícitas. O que representa essa postura para você?

Júlio Delmanto- A ficção do combate às “drogas”, como se as substâncias fossem dotadas de propriedades malignas por si, tem sustentado uma série de atrocidades nos últimos 40 anos, no Brasil e no mundo. O entendimento internacional caminha cada vez mais para um consenso quanto ao fracasso do proibicionismo, e esse parecia ser um caminho trilhado também por aqui, até os recentes eventos no Rio de Janeiro. Mesmo as UPP's tinham mais como objetivo desarmar o tráfico do que extingui-lo, talvez partindo da óbvia constatação de que as drogas ilícitas nunca vão acabar pelo simples motivo de que a demanda nunca vai acabar, queira o Estado ou não. Neste momento do Rio me parece que as drogas voltam a ser colocadas como responsáveis por todos os males sociais cujas origens são complexas e fundadas na desigualdade social, mas novamente fica claro que o problema não é coibir tráfico e uso de drogas ilícitas. É impensável que uma estratégia que visasse esse objetivo tivesse como foco somente o setor varejista, seria ridículo. O que há no Rio de Janeiro é uma disputa por território e uma tentativa militarizada de acirrar o controle social sobre as populações pobres, com vistas a garantir os interesses políticos e econômicos envolvidos nos mega-eventos esportivos que o Brasil vai sediar, e que já estão rendendo milhões para a iniciativa privada brasileira e estrangeira e para os políticos e líderes esportivos corruptos. Assim, do mesmo modo como “a droga” foi desde muito tempo usada como máscara para disfarçar estratégias de criminalização da pobreza e racismo, novamente o seu suposto combate é utilizado para justificar intervenções que não só são incapazes de afetar o comércio de substâncias ilícitas como estão longe de ter esta intenção.



Na sua opinião, essa postura não pode estar inflacionando a droga em territórios comandados por outros grupos?

Esse é um aspecto interessante, e do qual não tenho dados precisos para afirmar nada com certeza. Mas parece fundamental entender os diferentes tratamentos dados pela polícia carioca aos diferentes comandos, e também a forma mais branda como esta atua em territórios controlados por milícias. Não sei se necessariamente há uma atuação deliberada no sentido de fortalecer um ou outro comando ou de privilegiar milícias, mas tudo indica que ao menos existem acordos de convivência, certamente permeados por interesses políticos e muita corrupção. Salientando sempre que o chamado tráfico de drogas é o maior interessado na proibição das drogas, uma vez que é esta que maximiza seus lucros.



A massa empregada hoje no tráfico de drogas não seria prejudicada com a legalização das drogas? O que o senhor acredita que possa acontecer com essas pessoas em um processo de legalização? O senhor crê em uma retaliação do crime organizado contra a legalização?

Em primeiro lugar temos que diferenciar os grandes líderes do tráfico dos trabalhadores, da “massa” empregada neste serviço. Hoje mesmo (4 de dezembro) saiu na Folha um dado de que mais da metade destas pessoas não chega a ganhar 800 reais, que sua expectativa de vida é baixíssima e suas jornadas de trabalho muito intensas (10 horas diárias, sem folga semanal). Obviamente que eles se sujeitam a isso diante da total ausência de oportunidades, não estão ali obrigados, mas saliento isso para pensarmos que quem está ganhando mesmo com o tráfico são poucas pessoas, e certamente elas não estão nos morros. Assim, são estes grandes lucradores do comércio de drogas os principais interessados na ilegalidades destas substâncias. No entanto, uma legalização obviamente retira os meios de subsistência desta outra parcela, os empregados do comércio varejista de drogas, e daí podemos supor sim algum tipo de resistência por parte destas pessoas. Fica claro neste exemplo um aspecto importante que nós do Coletivo DAR fazemos questão de ressaltar: na mesma medida em que não concordamos com a fetichização que toma as drogas como entes malignos causadores de todos os problemas sociais, não vemos na legalização e regulamentação destas substâncias a salvação para todos estes problemas sociais. A legalização representa um golpe na violência do crime e do Estado, mas não resolve problemas causados por séculos de desigualdade social, corrupção e exploração. Portanto, não podemos esperar que uma mudança na política de drogas responda a problemas que são somente potencializados pela proibição das drogas, e não causados por ela.



As pesquisas de opinião sempre apontam a contrariedade da população em relação à legalização das drogas. Essa opinião parece ser guiada mais por um aspecto moral do que racional. Há um caminho para inverter esse quadro?

Certamente vivemos um ambiente de conservadorismo muito grande da sociedade brasileira, o que ficou claro nas eleições e também no grande apoio às intervenções militares absurdas do Rio. Tendo isso em vista, nós do Coletivo DAR pautamos nossa atuação no momento para uma busca de mudança de mentalidade, pois só depois disso é que mudanças de lei podem ser viáveis. De fato não é simples lidar com esse moralismo, evidente não só nesta questão mas em diversas outras, como o forte movimento contrário à legalização do aborto ou a enorme homofobia presente no brasileiro, mas acreditamos que é possível dialogar com estes entendimentos no sentido tanto de problematizar tanto o direito individual quanto os danos nefastos da proibição das drogas. Uma problematização do tratamento injustificavelmente diferenciado dado a drogas legais e ilegais também é um caminho interessante para desbancar este moralismo absolutamente sem argumentos. Sem dúvida é um processo lento.



A marcha da maconha vem sendo sistematicamente proibida no Brasil. Como vocês avaliam essa atitude do judiciário?

Aí já estamos falando de outra questão, que vai além do debate sobre políticas de drogas. Entendo que alguém possa ser contrário à mudanças neste sentido, apesar de discordar, mas é absolutamente inaceitável que alguém possa se posicionar contra a liberdade de expressão e de manifestação, pilastras básicas de sustentação de qualquer democracia minimamente respeitável. Este entendimento ridículo acontece somente em alguns Estados brasileiros, como São Paulo, enquanto outros realizam suas marchas tranquilamente, como Pernambuco e Rio. A expectativa é que o STF julgue logo esta questão, e me parece impensável que ele se posicione contra a liberdade de expressão. Por enquanto, só posso avaliar essa atitude do judiciário como revoltante e injustificável, e não posso entender que alguém concorde com isso, mesmo que discorde de nossas posições e proposições.



O evento é sempre estigmatizado como uma apologia à maconha e sendo organizado por "maconheiros". Qual estratégia vocês usam para deixar de lado a pecha de "evento de usuários" para tornar-se uma manifestação daqueles que se opõem ao proibicionismo, usuários ou não?

O argumento de que a Marcha é uma apologia ao crime é muito fraco, uma vez que o evento visa exatamente discutir propostas de alteração na lei para que esta conduta deixe de ser crime. Ninguém utiliza substâncias ilícitas nem incentiva este uso durante a Marcha. No entanto, ainda existe este entendimento de que a Marcha é um evento focado simplesmente nos direitos do usuário, inclusive entre alguns participantes do evento, mas isso parece estar ficando cada vez mais secundarizado frente ao entendimento de que esta é uma questão que vai muito além desta questão, que por si só já seria importante o bastante. Assim como a legalização do aborto é uma demanda que abrange muito mais do que as reivindicações de mulheres grávidas que queiram interromper sua gestação, o mesmo se dá neste debate, que para mim é composto de dois pontos fundamentais a serem combatidos: a ingerência do Estado na vida privada dos cidadãos e os danos sociais causados pela proibição das drogas, que são infinitamente maiores e mais sérios do que os POSSÍVEIS (e é importante ressaltar que drogas – legais e ilegais – são sim potencialmente danosas, mas apenas potencialmente, assim como carros e alimentos) danos causados pelas substâncias. É este debate que a Marcha e o movimento antiproibicionista como um todo tem tentado passar, no caso do DAR temos especificamente uma preocupação muito grande com ampliar nossa intervenção para além de demandas restritas aos interesses dos usuários (que poderiam por exemplo ser contemplados com a mera descriminalização, o que não resolveria em nada o problema da violência) e para além também da mera legalização da maconha, uma vez que a violência e a repressão concentram-se também na proibição de outras drogas.

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