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Escrito por Luciana Araujo, da redação | |
Em um seminário realizado entre os dia 7 e 9 de dezembro, no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, dezenas de entidades defensoras dos direitos humanos denunciaram a existência de um Estado Penal no Brasil. Os cerca de 450 participantes do evento aprovaram uma nota de repúdio à violência policial contra a população pobre no Rio de Janeiro e pela realização de um tribunal popular no Complexo do Alemão, em janeiro do ano que vem.
Logo no primeiro dia de debates, a socióloga Vera Malaguti afirmou categoricamente que "no Rio de Janeiro estamos vivendo para que fluam os negócios olímpicos transnacionais, um verdadeiro massacre das favelas". Na opinião dela, o caráter militarista da política de segurança pública fluminense vem sendo reforçado para criminalizar as populações pobres e a juventude, especialmente os jovens negros, como forma de frear as iniciativas de resistência ou qualquer questionamento à ordem. E o aumento da violência policial no Rio está diretamente subordinado ao fortalecimento do mercado dos mega-eventos, como as Olimpíadas, Copa do Mundo ou os jogos Pan-Americanos de 2007.
A polícia do Rio de Janeiro, conhecida por ser uma das que mais matam no mundo, estaria sendo utilizada para "limpar" a cidade em prol de interesses econômicos internacionais das empresas vinculadas aos eventos esportivos previstos para 2014 e 2016. "Agora a gente vê, além da matança cotidiana, as chacinas olímpicas. Um conjunto de políticas que vão da prisão em massa à ocupação, que eles estão chamando de pacificação, que na história do Brasil nos remete à década da dizimação das revoltas populares de 1850 (Balaiada, Farroupilha, Sabinada, Cabanada e outras). É mais um capítulo da ocupação militarizada dos territórios de pobreza". Vera hoje ocupa a secretaria geral do Instituto Carioca de Criminologia.
O ex-governador e ex-secretário de Polícia do estado do Rio, Nilo Batista, corrobora essa análise. E aponta como símbolo da legitimação de ilegalidades por parte do Estado nas comunidades periféricas o disparo contra um dos suspeitos de envolvimento com o tráfico que fugia da Vila Cruzeiro para o Complexo do Alemão no último dia 21 de novembro. A imagem de um dos rapazes tombando diante das câmeras de emissoras de TV em nenhum momento foi questionada como ilegal, embora a Constituição Federal proíba a execução sumária. "Um atirador da tropa de elite matou um daqueles garotos fugindo, e ninguém mais falou disso", criticou Batista. Em verdade, ao longo dos dias subseqüentes àquela ação, a cobrança dos veículos comerciais de mídia foi exatamente no sentido oposto, com vários meios de comunicação cobrando que a polícia tivesse alvejado os "supostos traficantes".
Violações e mortes são ocultadas pelo Estado
Apesar das evidentes violações de direitos transmitidas ao vivo pelas câmeras de diversos veículos, alguns meios de comunicação, a Secretaria de Segurança Pública e o governo do estado do Rio de Janeiro passaram dias comemorando a invasão das comunidades como uma vitória contra o tráfico. O governo federal e a presidente eleita voltaram a defender a expansão das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) para todo o país.
No máximo, houve poucos questionamentos ao que teriam sido atos excessivos de policiais, não previstos na orientação das ações. O historiador Davidson Nkosi rechaça essa visão distorcida dos acontecimentos dos últimos dias no Rio de Janeiro e ressalta que "o número crescente de presos (em todo o Brasil) não mostra incapacidade do sistema, porque a função do sistema é essa, para se reproduzir tem que manter a desigualdade. E ele está sendo muito capaz para manter essa lógica".
Davidson ressalta também a geografia do modelo de implantação das UPPs. "Não tem UPP onde tem milícias, na Baía de Guanabara, na Zona Sul. O que está por trás disso?".
Para Patrícia Oliveira, integrante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, o modelo das UPPs "não é nada mais do que um GPAE (Grupo de Policiamento em Área Especial) melhorado, porque tem dinheiro do BNDES". Os GPAEs foram criados em 2000, na gestão do então governador Anthony Garotinho, sob o anúncio de combate ao narcotráfico com policiamento comunitário. Até hoje, passados dez anos, nada mudou nas comunidades onde foram instaladas tais unidades.
Apenas o braço policial armado do Estado continua chegando àquelas populações. Nos dois casos, as violações de direitos dos moradores são tratadas como danos colaterais à ação bélica que supostamente enfrentaria o crime.
Os moradores vêm relatando o aumento das invasões domiciliares com mandados de busca genéricos ou mesmo sem mandado, furto de bens e dinheiro, destruição de pertences e ameaças. De acordo com entidades de direitos humanos, algumas das mães que entregaram seus filhos à prisão o fizeram em virtude de ameaças à integridade não só dos procurados, mas das famílias, por parte dos chefes do narcotráfico e também da polícia.
Após as denúncias se avolumarem e chegarem à imprensa após a ação no Alemão e na Vila Cruzeiro, a Secretaria de Segurança Pública do Rio proibiu os policiais que atuavam na "Operação Pente Fino" - vistoria em todas as casas das comunidades – de usar mochilas e celulares. A determinação é quase uma confissão silenciosa das violências promovidas por agentes do Estado.
Em relação aos mortos, no entanto, até o fechamento desta matéria a postura da Secretaria de Segurança Pública ainda era a de ocultar o número de mortes ocorridas nos dias 21 a 24 de novembro.
A reportagem do "Correio da Cidadania" tentou obter o levantamento consolidado das mortes, prisões e apreensões realizadas junto à assessoria de imprensa da Polícia Militar do Rio de Janeiro. A orientação foi de que fosse procurada a 21ª Delegacia Policial. Na 21ª DP, a informação foi que esses dados não estavam disponíveis e que deveria ser encaminhado um documento para que o delegado chefe verificasse se autorizaria a divulgação dos informes, que deveriam ser públicos.
"A gente não consegue chegar nos corpos. Quando começamos a procurar percebemos que tem havido retirada de corpos da região", relata uma das lideranças da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência. As entidades de direitos humanos têm recebido vários relatos de familiares do cheiro de corpos em putrefação e da falta de informações sobre pessoas que teriam fugido – o que inviabiliza inclusive o registro oficial para determinar se estão vivos ou mortos.
A espetacularização da ação policial por parte da mídia e o apoio da classe média favorecem os abusos.
"Perdemos o pudor de praticar ilegalidades contra as camadas pobres da sociedade", afirma juiz
Na mesa realizada na manhã do dia 8 de dezembro, durante o seminário, o juiz Rubens Roberto Rebello Casara opinou que "perdemos o pudor de praticar ilegalidades contra as camadas mais pobres da sociedade brasileira".
O também juiz Juarez Cirino dos Santos alertou para o fato de que o Estado brasileiro está "em guerra contra o povo". Após mencionar os dados do sistema carcerário brasileiro (ver quadro), Juarez ressaltou que se evidencia um "encarceramento em massa da pobreza, porque não há notícia de encarceramento das elites".
O presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo, Bruno Alves de Souza Toledo, concordou com os demais colegas de mesa e destacou que esse quadro é parte da realidade nacional e do modelo econômico em vigor.
"Achamos que vivemos na maior democracia do mundo porque elegemos uma mulher para a Presidência da República. Como se só isso bastasse para afirmar uma democracia. Mas não basta porque elegemos um operário nordestino e vemos agora o resultado desses oito anos de governo, aprofundando uma agenda neoliberal no país", disse.
A criminalização dos pobres leva também à culpabilização e ao preconceito contra as famílias. "Ter um filho no sistema prisional hoje é ficar presa junto com ele, porque todos discriminam, até na própria família", afirmou Maria Railda Alves, presidente da Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas no Estado de São Paulo.
Ser mulher e adolescente no sistema penal: uma dupla condenação
O seminário sobre encarceramento realizado pelo Tribunal Popular também abordou a situação dos jovens autores de ato infracional internos das instituições sócio-educativas no país. Ganhou destaque nesse debate a situação das meninas em cumprimento de medidas privativas de liberdade.
As jovens são apenas 4,5% dos internos. De acordo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o ano de 2009 se encerrou com 11.454 adolescentes internos e apenas 447 meninas cumprindo medida sócio-educativa privativa de liberdade no Brasil.
No entanto, as meninas e mulheres são muito mais reprimidas e medicalizadas, especialmente para controle da sexualidade. A imposição de fortes medicamentos decorre em geral de laudos que apontam quadros de "histeria" e "libido aguçada" nas meninas.
A advogada e pesquisadora Jalusa Arruda falou sobre a pesquisa que desenvolve neste momento junto às adolescentes internas da Comunidade de Atendimento Sócio-educativo de Salvador, a Casa de Salvador. Em seu trabalho, a advogada constatou que cerca de 15% dos meninos recebiam remédios contínuos e 80% das meninas eram medicalizadas sistematicamente. Uma das internas passou três anos na unidade sendo medicada diariamente.
Jalusa ressalta que mesmo "a postura dos juízes diante de uma menina autora de ato infracional é muito diferente em relação ao discurso diante dos meninos". Convidada a falar sobre a sua experiência na Fundação Casa de São Paulo, a adolescente A. A, de 17 anos, relatou que, durante cinco meses, foi obrigada a tomar sete diferentes medicamentos diariamente. A medicação foi prescrita após a jovem ter sido diagnosticada como esquizofrênica por ter denunciado que um agente entrara no quarto onde dormia com outras internas à noite e agredido outra garota.
O sistema penal brasileiro em números
494.598 pessoas presas; 299.587 vagas existentes em todo o país; 57.195 pessoas cumprindo pena em delegacias; 110% de crescimento do contingente de presos no país entre 2000 e 2010 (232.755); 60% dos detentos são negros; 58% têm entre 18 e 29 anos; 44% são presos provisórios (prisões em flagrante, preventivas, temporárias aguardando julgamento); 41% cometeram crimes patrimoniais sem violência ou relacionados às drogas.
Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), dezembro/2010.
Luciana Araujo é jornalista.
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