... do anacronismo do trabalho escravo, pois toda América já havia superado esse sistema, inclusive as colônias ainda existentes; das sucessivas pressões externas, especialmente dos países onde o capitalismo estava em estágio mais avançado como a Inglaterra; das novas forças produtivas iniciadas com a evolução do capitalismo no Brasil; do forte movimento abolicionista que em alguns momentos teve protagonismo da massa popular, militância de líderes populares comprometidos com a desmarginalização da pessoa escrava e negra como Luis Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, Antonio Bento, embora o processo geral fora controlado pela elite política e econômica; das lutas iniciadas desde o momento que os africanos são trazidos ao Brasil como escravos e reagem a ignomínia do sistema através de variadas formas: morosidade na produção para encarecer - muitas vezes inviabilizar econômicamente - o trabalho escravo, fugas individuais e em grupos, formação de quilombos, saques e depredação de engenhos, greves e negociações até o limite do sistema, visto que o escravo nascido no Brasil sabia como “esticar a corda”, levante armardo e convulsões popular.
Em 13 de Maio de 1888 o Brasil desinstitucionaliza a escravidão, abolindo uma significativa massa de homens e mulheres negras de uma infame relação de trabalho e status social. A partir desse dia o trabalho escravo perde amparo legal, o apoio do Estado e seu uso é criminalizado. Inegavelmente a Lei Áurea foi um salto de qualidade na vida institucional brasileira e uma grande conquista popular na medida que foi vitoriosa a dura resistência e luta para o fim da escravidão. Ser ou não ser escravo é condição juridica diferente, pois um escravo é considerado um bem semovente. A humanidade superou uma grave deficiência legal e moral quando aboliu e criminalizou a escravidão. No Brasil durante muitos anos a população negra, através dos clubes, associações, entidades e jornais negros comemorou o 13 de Maio, ainda vemos profundas reminiscências dessa compreensão através dos nomes dos clubes negros tradicionais (Clube 13 de Maio, Clube José do Patrocínio, Clube Luis Gama, Clube 28 de Setembro, dentre outros) sediado em vários municípios do interior de estados brasileiros.
A controvérsia relacionada ao 13 de Maio são os movimentos preparatórios para um novo projeto de nação empreendido pelo Estado e pela elite brasileira antes e depois da Lei Áurea e os resultados obtidos em benefício daqueles que detinham o poder político e econômico do Brasil. O processo abolicionista teve pequenas variáveis entre os países escravocratas, em geral as elites locais tiveram o controle do debate, optaram pela gradualidade do processo (leis como a do ventre livre, sexagenário), respeito a propriedade privada (a maioria dos países indenizaram os proprietários de escravos, no Brasil a indenização é indireta, dava através da compra de toda produção cafeeira pelo governo federal prática extinta na década de 30), preocupação com o alto contingente populacional negro (fim do tráfico negreiro, proibição da imigração africana, incentivo a imigração européia e uso de escravos em conflitos) e manutenção do poder nas mãos dos brancos e seus descendentes.
Os setores dominantes do Brasil particularizam seu projeto abolicionista quando optam pelo branqueamento do país ao invés de obter uma maioria social branca, recrudescem o uso da violência e repressão contra a população descendente de escravos a fim de eliminá-la fisicamente (Balaiada, Canudos, Guerra do Paraguai); buscam a desafricanização do país através do degredo de africanos e/ou escravos libertos acusados ou suspeitos de crimes ou ato anti-social; impedem a posse da terra através da Lei da Terra, em 1854, junto dessa lei os quilombos conhecidos são dizimados pela Força Pública; substituem a mão de obra dos escravos, negros e dos brasileiros pela do camponês europeu atraídos ao Brasil - marginalizando aqueles que desde os primórdios da colonização na América Portuguesa trabalharam na terra.
Nossa particularidade na passagem do trabalho escravo para o livre resultou em graves problemas sociais que perduram atualmente. A elite escravocrata brasileira se beneficiou pelo fato do Brasil ser o último país a romper com o escravismo, pois inspirada nas experiências abolicionistas que remontam ao século 18 - na Inglaterra, dos abolicionistas pioneiros Willian Wilberforce, Charles Fox e Lord Grenville - consegue conduzir o processo da forma que planejou: lento, gradual e seguro, além de obter parte importante dos resultados perseguidos mantendo-se sem riscos no poder. A subalternidade social e econômica da população negra e a profunda desigualdade entre ricos e pobres no Brasil não vem da abolição dos escravos. São heranças diretas da escravidão, da consertação política imediatamente anterior e após a Lei Áurea; do capitalismo dependente que se erigiu e atinge desproporcionalmente as populações marginalizadas, do subdesenvolvimento que marca a trajetória econômica brasileira, somados a sustentação do racismo sistêmico que assola a democracia e questiona a unidade do povo brasileiro. Essa herança nefasta pesa sobre o povo brasileiro que em grande parte se miscigenou, que sofre com a ganância de uma elite que detêm o poder político e econômico do país e o governa com sadismo, autoritarismo, egoísmo e de costas aos interesses nacionais, tal qual o senhor de engenho.
Desse modo a democracia e a justiça social brasileira são maculadas pela pobreza que caminha muito próxima a riqueza; pela inobservância dos direitos fundamentais do ser humano pobre em maior grau do negro, ao lado da impunidade dos crimes praticados pelos ricos, intitulados “crimes do colarinho branco”; pelos latifúndios que expulsam famílias trabalhadoras do campo, reproduzindo os efeitos da Lei da Terra; pela inversão de prioridades que transformam o país em refém do capital especulativo prejudicando o desenvolvimento e a prosperidade do Brasil. Experiências como a Lei Áurea, embora carregadas de insuficiências, devem ser valorizadas. Sob pena de jogar fora a água suja (escravidão e abandono dos recém libertos) e a criança (abolição da escravatura). Cabe aos lutadores anti-racista, ressignificar o 13 de Maio evitando a apropriação dessa data pela elite demagoga e mentirosa. Um país com histórico antidemocrático, violento e que marginaliza sua população não-branca e pobre, não deve renunciar fatos positivos, ao contrário, deve incorporá-lo e ajustar as insuficiências que esses fatos apresentar. Quando negamos o valor positivo do 13 de Maio para a população negra e para população brasileira assumimos nossa incapacidade de produzir resultados positivos, mesmo quando coletivamente empreendemos uma luta.
*Edson França, É Coordenador Geral da Unegro, membro do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e da coordenação da Conen-Coordenação Nacional de Entidades Negra
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