Os Novos Valongos


Wolney Garcia - Produtor rural, jornalista
A título de comparação com exemplos de situações contemporâneas, sugerimos aos 113 intelectuais, sindicalistas, empresários e artistas contrários ao sistema de cotas para ingresso de negros nas universidades uma longa viagem ao passado, em nossa companhia, com o fim de nos determos exatamente no período de permanência da família real no Brasil. Naquela época, a cidade do Rio de Janeiro, oportunamente brindada à condição de capital do claudicante império lusitano, ocupava a posição de maior praça do tráfico negreiro das Américas, sem termos de comparações. E era lá que funcionava, a todo o vapor, o monstruoso e macabro mercado do Bairro Valongo, uma verdadeira casa de horrores nos moldes da não menos insólita fortaleza de São Jorge da Mina, na costa da África e cujo complexo de armazéns enfileirados um de frente para o outro, com todas as unidades cercadas por grossas grades de ferro, era o centro de operações onde os navios negreiros, os trágicos “tumbeiros”, descarregavam suas “cargas” semimortas a fim de serem “armazenadas” e “recuperadas” enquanto se aguardava o martelo bater nos leilões. Ali mesmo, no Valongo, amontoados atrás das grades para quem quisesse ver, e na mais completa nudez, homens, mulheres e crianças morriam, aos milhares, vítimas da desnutrição e violência, e eram enterrados, no cemitério interno, enfileirados em fossas, ao comprido, para economizar o tão necessário espaço.

O presente preâmbulo tem a finalidade de ilustrar aos distintos intelectuais, sindicalistas, artistas e empresários signatários da carta aberta contra as cotas para os negros sob o argumento de uma possível discriminação contra outras classes sociais menos favorecidas que um número infinito de “valongos” ainda pululam por este imenso país afora representados na iniqüidade dos distritos policiais e complexos penitenciários equipados com celas reduzidas, em cujo interior os detentos, na sua maioria afrodescendentes, têm poucas chances de recuperação, espremidos nas grades em meio a uma superpopulação carcerária ali coexistindo em condições também de “mercadoria armazenada”.

A bem da verdade, os descendentes dos povos africanos historicamente responsáveis pela construção do Brasil, em lenta agonia de 350 anos como alvos da mais brutal violação dos direitos humanos, continuam recebendo, sob o olhar da fria indiferença das políticas públicas, o tratamento de rejeitados da nação, ao passo que, em relação aos judeus, depois do término do conflito mundial no qual também foram vítimas de discriminação, preconceitos e crimes hediondos em todas as suas faces, conseguiram fincar raízes no solo de uma pátria verdadeira e dela fazer parte, de fato e de direito, lutando bravamente por cada metro do chão duramente conquistado. Durante séculos, como agora ainda está ocorrendo, enquanto se arrastavam os horrores e arbitrariedades normalmente fora de controle quando um homem exerce o direito de posse sobre outro, muito se escreveu, muito se discursou e muito se procrastinou. Pressões antiescravistas com ações de impacto, inclusive militares em águas brasileiras, só vieram da Inglaterra, sempre preconceituosa, mas determinada em eliminar concorrências e de olho num potencial mercado de milhões de libertos. E assim o lento processo de princípios contrários à natureza humana só foi extinto em função de muito desgaste, esvaindo-se em si mesmo tal como uma laranja podre desprendida do galho que se esborracha no chão. Os setores comprometidos com o futuro do país não podem desejar a repetição do jogo de empurrar nesta hora em que se debate a educação como forma de resgatar uma dívida com séculos de atraso. A questão das cotas, para a participação dos negros em 100% das universidades, bem como outros débitos sociais pendentes que aguardam veredicto favorável a eles, se nos é permitido falar de justiça, antes de qualquer decisão formal do governo, deveria se constituir em sentimento manifesto na alma e no coração de todos os brasileiros: por aclamação nacional!

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