Uma Em Cada 6 Gestantes São Vítimas de Violência Domésticas



No Brasil, a violência doméstica contra a mulher alcança proporções dramáticas. Segundo a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, vinculada à Presidência da República, uma em cada cinco brasileiras sofre algum tipo de violência por parte do parceiro íntimo. Outro dado de pesquisa para tese de doutoramento em Saúde Coletiva, da enfermeira Celene Aparecida Ferrari Audi, apresentada em agosto último na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, diz que de cada seis gestantes uma é alvo de algum tipo de violência, representada na forma de espancamento, coação, pressão psicológica ou abuso sexual por parte do companheiro.


A pesquisa de Celene, a primeira do gênero no Brasil, foi feita junto a 1.379 mulheres, no período de 2004 a 2006. Foram ouvidas gestantes que realizaram o acompanhamento pré-natal nas unidades públicas de saúde. Destas, 19,1% declararam ter sofrido violência psicológica, que é caracterizada por ofensas, intimidações e atos de humilhação. Além disso, 6,5% disseram ter sido vítimas de violência física ou sexual. “Os dados do estudo revelam que o problema é extremamente preocupante e que por isso mesmo deve merecer uma reflexão mais aprofundada tanto por parte das autoridades quanto da sociedade”, analisa a pesquisadora.

A enfermeira faz questão de ressaltar que a despeito de a pesquisa ter sido realizada numa região carente de Campinas, a violência doméstica contra a mulher não pode ser automaticamente associada à pobreza. “As vítimas e seus algozes podem ser encontrados em todas as classes sociais. Ocorre, porém, que nas esferas mais altas o problema é tratado de forma muito mais velada”, adverte. De acordo com Celene, a agressão psicológica, física ou sexual contra a mulher está relacionada a uma série de fatores. Um deles é a violência mais geral presente na sociedade. Todavia, ela identificou alguns componentes específicos no caso das gestantes que participaram da pesquisa.

Em relação à violência psicológica, foi apurado que o risco é maior para as gestantes cujos parceiros consomem bebidas alcoólicas com freqüência superior a uma vez por semana. No que toca à violência física/sexual, foi constatado que o companheiro da gestante usava drogas e consumia álcool mais de uma vez na semana. Em boa parte dos casos, as mulheres disseram ser responsável pela família, o que indica que o desemprego do homem também está associado de alguma forma com a problemática. Essa associação também observada em relação às gestantes que presenciaram ou sofreram agressão física na infância, relataram sentir-se rejeitadas por estarem grávidas, assim como àquelas que tiveram dificuldade em comparecer à consulta pré-natal. “Nós também detectamos que as mulheres sob maior risco de violência doméstica são as que apresentam baixa escolaridade”, afirma Celene.

Rejeição e maus tratos

A enfermeira relata que, por meio da análise dos dados, não foi possível observar uma associação significativa entre a violência contra as gestantes e o baixo peso ou o nascimento prematuro das crianças. Em relação aos eventos adversos manifestados durante a gestação, a pesquisa apurou que os mais freqüentes foram infecção urinária, falta de desejo sexual, afecções ginecológicas, enxaqueca, sentimento de rejeição e distúrbios neuróticos. “As prevalências de violências observadas e os fatores a elas associados evidenciam a magnitude do problema. A situação é grave e precisa ser enfrentada o quanto antes”, defende a autora da pesquisa.

Nesse sentido, Celene destaca que algumas iniciativas já foram adotadas, como a promulgação por parte do governo federal, em agosto de 2006, da Lei Maria da Penha, que tornou mais severas as penas aos agressores de mulheres. “Sem dúvida, a medida foi extremamente positiva. Entretanto, ainda carecemos de mecanismos adequados para assistir as vítimas da violência doméstica. O estudo constatou que durante o atendimento pré-natal, essa questão praticamente não é abordada, seja pela falta de preparo dos profissionais, seja pela falta de estrutura”, avalia.

A enfermeira sugere a adoção de programas que permitam tanto a identificação quanto a abordagem apropriada do problema, preferencialmente por intermédio de ações inter e multidisciplinar no âmbito da saúde pública. “Se não for dessa forma, temo que a prevalência e a gravidade da violência perpetrada contra as a mulheres não diminuam na medida do desejado e do necessário”, completa Celene, que foi orientada pela professora Ana Maria Segall-Corrêa, do Departamento de Medicina Preventiva e Social da FCM. O estudo foi financiado pelos ministérios da Ciência e Tecnologia e Saúde, por meio, respectivamente, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Departamento de Ciência e Tecnologia em Saúde (Decit).

Uma dor silenciosa

A violência doméstica perpetrada contra as gestantes é, em si, dramática. Não é preciso carregar no tom para tornar o tema mais chocante do que ele já é. Todavia, tratar do assunto sem dar voz às vítimas poderia comprometer o objetivo de denunciar o problema em toda a sua amplitude. Afinal, como diz a canção: “Paz sem voz, não é paz. É medo”. Assim, o Jornal da Unicamp optou por revelar aspectos das agressões sofridas por algumas dessas mulheres, por meio do relato que elas fizeram às entrevistadoras que colaboraram com a pesquisa de Celene. Registre-se que essas entrevistadoras tiveram apoio psicológico durante todo o trabalho de campo, medida que se mostrou fundamental à efetivação do estudo. “Todas nós ficamos abaladas com a realidade que encontramos”, admite a autora do estudo.

De acordo com Celene, os parceiros íntimos dessas mulheres praticam toda sorte de agressão contra suas companheiras. Socos, pontapés, tapas, xingamentos e humilhações são comuns na vida da maioria delas. “Uma delas me disse que o marido a agredia freqüentemente, inclusive com chutes na barriga”. Mas o caso que mais chocou a pesquisadora foi de uma mulher que relatou ter sido espancada com uma ripa de madeira, extraída da moldura de um quadro que estava na parede. “Ela falou que o marido chegou bêbado em casa, tirou a madeira do quadro e começou a bater nela com muita força”.

Um aspecto que chamou a atenção de Celene foi a percepção que algumas mulheres têm da violência. Uma das gestantes garantiu às entrevistadoras que o marido não era violento. Entretanto, admitiu que ele era bastante ciumento. Em seguida, lembrou de um episódio em que o companheiro chegou em casa e a encontrou conversando com um parente. Irritado, o homem sacou de uma arma e deu um tiro para o alto. “Na cabeça daquela mulher, a atitude do marido não se configurava como uma ação violenta, muito provavelmente porque a banalização daquela situação fez com que ela passasse a encará-la como normal”, infere a enfermeira.

Peso da lei

Promulgada em agosto de 2006, a Lei Maria da Penha entrou em vigor no mês seguinte. A legislação alterou o Código Penal, impondo penas mais severas àqueles que cometem violência contra as mulheres. O texto determina que os agressores sejam presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada pela Justiça. Além disso, impede que os algozes tenham o benefício da pena alternativa. A nova legislação estabelece, ainda, que o tempo máximo de detenção seja de três anos. Anteriormente, esse período era de um ano somente.

A lei foi batizada de Maria da Penha em homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que lutou durante 20 anos para que seu agressor, o professor universitário Marco Antonio H. Viveros, seu ex-marido, fosse condenado. Em 1983, Viveros tentou matá-la em duas oportunidades. Na primeira vez, ele deu um tiro na mulher, que ficou paraplégica. Na segunda, tentou eletrocutá-la. Na ocasião, a vítima tinha 38 anos e três filhas, entre 2 e 6 anos de idade. A investigação teve início no mesmo ano, mas a denúncia só foi apresentada pelo Ministério Público em 1984. Oito anos depois, o agressor foi condenado a oito anos de prisão, mas usou de filigranas jurídicas para protelar o cumprimento da pena.

O caso foi levado ao conhecimento da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acatou, pela primeira vez, a denúncia de um crime de violência doméstica. Viveros foi preso em 28 de outubro de 2002 e cumpriu dois anos de prisão. Atualmente, está em liberdade. Depois das tentativas de homicídio, Maria da Penha tornou-se uma ativista de movimentos sociais contra a violência e a impunidade. Ela é a atual primeira vice-coordenadora da Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (APAVV), instalada no Ceará, seu Estado.

Quando a lei que leva o seu nome foi promulgada, Maria da Penha deu a seguinte declaração: “Eu acho que a sociedade estava aguardando essa lei. A mulher não tem mais vergonha [de denunciar]. Ela não tinha condição de denunciar e ser atendida na preservação da sua vida”. Sobre a importância da denúncia especificamente, ela acrescentou: “Não adianta conviver. Porque a cada dia essa agressão vai aumentar e terminar em assassinato”. De acordo com levantamento parcial realizado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, durante os primeiros oito meses de vigência da lei Maria da Penha foram instaurados 32.630 inquéritos policiais, 10.450 processos criminais, 864 prisões em flagrante e 77 prisões preventivas.


Agência Envolverde/IP

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