O tradutor centenário dos sertanejos


Patativa do Assaré transformou “coisas complexas para um código de comunicação que fosse compreensivo para o seu povo”

Patativa do Assaré transformou “coisas complexas para um código de comunicação que fosse compreensivo para o seu povo”
Eduardo Sales de Lima

da Redação


No dia 5 completaram-se os cem anos de nascimento de Patativa do Assaré, um poeta que construiu a si mesmo e desenvolveu uma poesia valorizando o sujeito popular. Leitor ferrenho de clássicos da literatura portuguesa, não seguiu metodologias acadêmicas para elaborar seus versos; e sim sua sensibilidade. O que talhou uma arte para ter, entre outras funções, a de enfrentar as injustiças sociais, sem que sua riqueza estética ficasse abalada.


“O Patativa virou um tradutor do mundo. Ele se inquietava com tudo o que via e imediatamente passava a comunicar aquilo”, afirma Luiz Tadeu Feitosa, antigo amigo e estudioso da obra do autor. Como explica, o poeta transformou “coisas complexas para um código de comunicação que fosse compreensivo para o seu povo”.


Também conhecido como “poeta cidadão”, Patativa vai na contramão a outros escritores, considerados eruditos pela universidade, pela academia. O crítico literário Mário Chamie já lembrava pouco depois da morte de Patativa: “Enquanto um Guimarães Rosa, um João Cabral de Melo Neto e outros escritores eruditos convertem a matéria-prima da tradição oral em alta literatura, Patativa faz o inverso, serve-se da literatura erudita para enunciar uma linguagem de comunicação direta”.


Para ouvir

A oralidade dos versos, característica acentuada do sertanejo, e presente desde a “meninice” de Patativa, nos remete para o fato de que sua poesia, apesar de conter estilo e métrica, sempre foi construída para ser ouvida. Uma característica produzida pela próprio modo de aprender do menino agricultor da Serra de Santana (zona rural de Assaré, no Ceará). Patativa foi “alfabetizado pela voz, não pela letra”, lembra Feitosa, que também é professor de jornalismo na Universidade Federal do Ceará (UFC). Não à toa, ele recebeu como apelido o nome do “Patativa”, pássaro cantador do nordeste, no período em que visitou Belém (PA), nos anos 1930.


Um anseio do poeta era o de que o sertanejo se reconhecesse por meio da produção cultural local, e não pelo que pessoas de outras regiões do Brasil falavam em relação ao sertanejo. Uma parte do poema “Cante lá que eu canto cá” mostra isso: “Cante a cidade que é sua / Que eu canto o sertão, que é meu”. Segundo Feitosa, o poeta compreendia muito bem o modo preferencial que a mídia eletrônica e outros meios de comunicação utilizava ao falar do sertão, com “olhar estrangeiro”.


“Ele leu 'Os Sertões' de Euclides da Cunha e se impressionou, por exemplo, com a primeira parte do livro, que de forma muito competente Euclides falava da ecologia, da geografia do sertão. Mas na hora em que ele começa a falar do povo e da luta, como paulista que era, não havia como retratar esse povo com o código que formava a sua pessoa; é o olhar do outro”, explica Feitosa.


Doutô?

O poeta frequentou a escola somente por seis meses. Entretanto, por iniciativa própria, leu inúmeras obras clássicas, dentre elas, as de Luiz de Camões e de Bocage. Considerava Castro Alves como seu grande mestre. O cearense chegou a ler o “Tratado de Versificação”, escritos pelos parnasianos Olavo Bilac e Guimarães Passos. Agraciado com o título de Doutor Honoris Causa em três universidades públicas do Ceará, Patativa foi estudado por universidades na França e na Inglaterra.


Mas sua relação com clássicos, eruditos e mesmo com a academia para por aí. Patativa optou por chamar a si mesmo de “poeta matuto”. Segundo Feitosa, era uma forma desdenhosa de o próprio poeta tratar essas instâncias. “A academia acha que para ser o cânone literário ou poético tem que passar pelas bancadas acadêmicas, e isso não é verdade. Porque todos os antropólogos sabem que existem formas distintas de sabedoria”, afirma Feitosa.


Outra coisa. Por ter sido alfabetizado pela voz e não pela letra, e posteriormante, por transmitir sua arte também pela voz, acadêmicos o classificaram como sendo um poeta analfabeto. Mas tal preconceito “faz parte do processo civilizatório, em que as hegemonias arbitram os padrões que uma sociedade deve seguir”, como explica Feitosa.


Para o pesquisador, Patativa não precisa desses cânones, da representação materialista, romântica, regionalista para subsidiar sua licença poética, “diferente dos poetas de bancada que precisavam do modelo e da metodologia da criação poética para fazer poesia; ele não. Tudo porque ele é gênio”, atesta.


Mas o que impede a academia de considerar Patativa tão poeta quanto João Cabral de Mello Neto? Como acrescentou outro pesquisador da obra de Patativa, Cláudio Henrique Sales Andrade, “o que incomoda é a pobreza: não a dos versos, mas a do autor deles”.

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