Aborto decorrente de estupro: uma questão de humanidade





Escrito por Tereza Cristina Exner

A discussão a respeito do aborto é das mais tormentosas, já que envolve, para além de conceitos jurídicos, noções de fé, religião e, acima de tudo, a discussão sobre o direito à vida, quando ela se inicia e se pode ser em algum momento – e até quando? - interrompida.

Trata-se de tema polêmico que não sai de pauta, sendo que de tempos em tempos retorna com maior ênfase. Foi o que ocorreu recentemente em razão de notícia do aborto decorrente de estupro, realizado por uma equipe médica em uma menina de apenas 9 anos de idade, o que recebeu severas críticas de determinados setores, notadamente da Igreja Católica.

Sem pretensão de rediscutir tal assunto, já por demais abordado e explorado, e tampouco pretendendo efetuar defesa do aborto em sentido amplo, o objeto do presente artigo é enfocar o debate a respeito do aborto legal decorrente de estupro, cuja autorização se acha prevista no Código Penal em vigor, diploma legislativo dos anos 40.

É de se notar que mesmo naqueles tempos conservadores, o legislador houve por bem permitir o aborto decorrente de estupro, seguramente porque sensível à dor e desespero da mulher que, vítima de tão brutal violência, vê-se, ainda, na terrível contingência de carregar ao longo de 9 meses, 9 penosos meses, o fruto de um ato cuja lembrança e memória só podem gerar profunda dor.

Ninguém questiona a beleza da maternidade, que de todo modo não está associada a uma gravidez forçada, decorrente de violência e brutalidade.

Mais do que isso, esquecem-se aqueles que se mostram contrários a tal dispositivo legal, defendendo a retirada desse permissivo da lei, que não se trata de simplesmente enxergar o valor da vida humana para além de qualquer maldade, preponderando, assim, o valor do direito à vida do nascituro, ainda que fruto de estupro.

Afinal, contra tal direito colide outro de igual dimensão, que diz com o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à intimidade, sendo que a permissão de se realizar aborto, em caso de estupro, objetiva dar tratamento respeitoso e digno à mulher, que, muitas vezes casada, já com outros filhos, com emprego, vida social, será submetida a novos e reiterados constrangimentos.

Continuará a ser impiedosamente punida em sua condição de vítima, tendo que renovar cotidianamente sua dor, explicando a amigos e conhecidos que sua gravidez prescinde de comemorações e cumprimentos, vergonha e horror que alcançarão maiores proporções diante dos próprios filhos. Como lhes explicar que aquela criança que traz em sua barriga – irmã/irmão dos demais rebentos - não é desejada? Pior ainda, como explicar aos filhos as razões desse comportamento materno, sem gerar neles próprios dor, sofrimento e eventualmente sentimentos contraditórios de rejeição e incompreensão? E o relacionamento com o marido ou namorado ao longo desses meses? Será que não restaria abalado? E como lidar com o seu próprio corpo transformando-se dia a dia, sem que isso lhe traga qualquer sensação de felicidade?

Ora, obrigar a mulher vítima de um estupro a abrir mão de sua vida pessoal, afetiva, social e profissional, gerando-lhe possíveis danos físicos, emocionais e psíquicos, soa desumano, sob qualquer ótica e perspectiva, equivalendo retirar dessa pessoa humana qualquer direito a valores como respeito e dignidade, sob o argumento de que o feto que traz em seu ventre – expectativa de vida futura - é mais importante e valioso que a vida já concretizada e plena de reconhecimento, afeto e inserção social consolidada da própria gestante.

Implica desconhecer, por fim, a angústia e o tormento que sempre acompanham a tomada dessa terrível decisão, razão pela qual o mínimo que se pode destinar a mulheres nessa trágica situação é a possibilidade de ver sua dor amparada pelo Estado. Daí porque entendermos que essa hipótese de aborto legal – como de resto a outra prevista no art. 128, do Código Penal - deve ser mantida na legislação em vigor, anotado que se trata de mera opção concedida a cada vítima de um estupro, de forma que ela – que já não teve condições de optar pela gravidez – possa, mediante menor grau de sofrimento, resultado do apoio estatal consubstanciado na lei que lhe retira o estigma de criminosa, tomar tão penosa decisão.

Tereza Cristina M. K. Exner é Procuradora de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático - MPD.

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