Polêmica etílica

No Brasil, as bebidas alcoólicas são tratadas pelo governo de forma controversa

Sergiovanne Amaral - Jornalista

Não há dúvidas de que a publicidade de bebidas alcoólicas induz o seu consumo. As grandes marcas não gastariam bilhões de dólares para financiar campanhas publicitárias em todo o mundo, se essa afirmação não fosse verdadeira. Negar isso é não ver a essência da propaganda. O problema é quando ela passa a influenciar quem não devia; no caso, crianças e adolescentes. Mesmo com poucas pesquisas concluídas em países em desenvolvimento, como o Brasil, é consenso que a associação de valores subjetivos às marcas e sua livre exposição atingem públicos de todas as idades e fixam, com eficácia a ideia do consumo, conscientemente e inconscientemente, como ocorre com produtos diversos. Ainda assim, muitos publicitários e empresários do ramo de bebidas tentam se esquivar e se omitir de parte da responsabilidade atribuída a eles por fazer crescer o aumento do consumo de bebidas não só entre adultos, mas também entre adolescentes.

No Brasil, as bebidas alcoólicas são tratadas pelo governo de forma controversa. A Lei 9.294/96, que regulamenta a propaganda nesse nicho, define que são consideradas como tal aquelas superiores a 13º Gay-Lussac (GL), medida do teor alcoólico. A propaganda dessas bebidas estão vetadas na televisão e no rádio das 6h às 21h, como forma de preservar crianças e adolescentes. Ironicamente, a bebida mais consumida no Brasil, a cerveja, tem teor alcoólico médio de 3,5º a 4,5º GL (marcas mais comuns). É bom saber que a maioria dos acidentes e incidentes envolvendo álcool está relacionada à ela, que tem a propaganda liberada em qualquer horário.

Como a escalada do alcoolismo e do consumo de bebidas por menores é crescente, o governo Lula tentou regularizar a situação com o Projeto de Lei (PL) 2.733/08. O objetivo é definir bebidas alcoólicas a partir de 0,5º GL e enquadrar cervejas, vinhos e espumantes nas sanções já previstas na Lei 9.294. Crianças seriam menos expostas às propagandas e, conquentemente, menos influenciadas e induzidas a consumir as bebidas. O PL vai ao encontro das necessidades sociais de conter problemas causados pelo álcool, mas desagrada empresários e publicitários, que teriam redução significativa em seus lucros. Seguindo as recomendações do Ministério da Saúde e de pesquisadores, essa seria uma decisão moralizante para o mercado e para a sociedade, que visa o bem público e a diminuição do prejuízo tido por indivíduos e o Estado com problemas relacionados ao álcool. Mas publicitários alegam que o PL fere a ética do mercado, impedindo a livre expressão comercial. Pergunto-me até que ponto é saudável manter a livre expressão de grupos que lucram rios de dinheiro com a venda e publicidade de produtos, mas pouco se comprometem com o bem-estar social. Há a ética do mercado e a do cidadão (que nem sempre consegue elaborá-la ou defendê-la da melhor forma). Empresários que enviam lobistas ao governo para impedir a aprovação de leis desse tipo estão preocupados, na verdade, como o bem-estar de seus bolsos.

Os métodos usados pelos publicitários nas propagandas também é muito questionável. Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (USP) com adolescentes de 14 a 17 anos comprovou que os estudantes mais expostos a propagandas de cerveja consumiam níveis mais altos da bebida. Eles foram expostos a 32 propagandas diferentes. As mais apreciadas eram justamente as das marcas mais consumidas pelos adolescentes. Os temas preferidos pelos menores eram relacionados a mulheres, sexo, dinheiro e futebol. As propagandas que tinham temas diferentes, como a qualidade da cerveja, ou o processo de fabricação, por exemplo, ficaram em último lugar no ranking. Isso nos faz pensar que a associação de valor e poder social ao produto faz com que as pessoas, mesmo que inconscientemente, busquem não o produto em si, mas a sensação que ele promete ou parece causar. Nego-me a acreditar que esse seja um comportamento ético e que reforce a moral de mercado, fragilizada em países como o Brasil. Como efeitos indiretos, podem ser observados a reafirmação de conceitos machistas e sexistas.

A regulamentação das propagandas de cerveja e talvez a sua restrição a pontos de venda, como ocorreu com o cigarro, parece ser uma boa medida para tentar deter o crescente consumo do álcool, mas de forma alguma pode ser a única atitude. O consumo de álcool vai continuar, com ou sem publicidade. Cabe ao governo implantar uma política eficaz que trate as bebidas alcoólicas com a importância que merecem. Tão cínica quanto a resposta publicitária e empresarial às acusações sobre a influência do consumo aos adolescentes é a postura do governo perante uma droga tida como lícita, mas que hoje é uma das três maiores causas de mortes no mundo.

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