O julgamento e a condenação (prisão perpétua) do austríaco Josef Fritzl, acusado de trancar e violentar a própria filha durante 24 anos e ter sete filhos com ela, ganharam repercussão nos jornais de todo o mundo. Segundo a promotoria do caso, a rotina como refém começou aos 18 anos, mas os abusos à filha já eram constantes desde os 11. Imaginar essas atrocidades apavora e causa assombro, mas traz à tona uma questão delicada e urgente: a de que casos de incesto (relações eróticas sensoriais ou sexuais entre parentes por consanguinidade e, mais modernamente, praticada por pessoas que têm relação de poder na família) ocorrem com frequência espantosa na sociedade. Como o tema ainda é um tabu no Brasil, não temos uma estatística oficial sobre o assunto, mas, se fizermos uma projeção considerando as pesquisas recentes na Europa, os números seriam alarmantes. Por mais surpreendente que possa parecer, não é sempre considerado um crime na Europa: países como a França, Espanha e Portugal não processam adultos pela prática, desde que consensual, e a Romênia estuda seguir pelo mesmo caminho.
Uma sondagem conduzida na França pelo Instituto Ipsos, para a Associação Internacional de Vítimas de Incesto (Aivi) e uma companhia de seguros, revela que 2 milhões de pessoas se apresentaram como vítimas da prática (3% da população) e que mais de 1/4 dos habitantes conhece uma vítima de incesto, o que representa 19 milhões de pessoas. Se esses percentuais dissessem respeito ao Brasil, aproximadamente 5,4 milhões de pessoas já passaram pelo trauma.
Trata-se de um problema de saúde pública, pela alta incidência e pelas graves consequências que geram à coletividade. Indivíduos que cometem incestos não têm um perfil específico. Usualmente, são cidadãos acima de qualquer suspeita. A diferença é que eles apresentam transtornos de personalidade e comportamento. Os abusadores intrafamiliares (incestuosos) podem ser também pedófilos extrafamiliares. Muitos deles são portadores de transtorno de personalidade antissocial (sociopatas). Os pedófilos são portadores de parafilias ou transtornos de preferência sexual. Nos casos mais complexos, eles podem apresentar um transtorno obsessivo compulsivo grave, que exige tratamento medicamentoso. Muitos deles solicitam a castração química, pois não conseguem por si próprios conter os seus impulsos. Outros não aceitam o tratamento, e a prisão é uma forma utilizada para controlar as suas compulsões e proteger as crianças do risco que eles representam. De qualquer forma, não basta a prisão. É necessário tratá-los. A educação é peça fundamental na prevenção. Todos nós nascemos predominantemente instintivos, com atos comparados aos de um animal. Com o desenvolvimento e com a educação, os instintos vão sendo humanizados e o indivíduo controla melhor os seus impulsos.
Os familiares, os amigos e os educadores também têm papel essencial para evitar os atos dos incestuosos. Mudanças no comportamento, alterações no sono, queda no rendimento escolar, retorno do ato de urinar na cama ou nas calças, choro ou medo de ficar sozinho com adultos, terrores noturnos, roer unhas, dificuldade para evacuar, fala erótica em crianças pequenas, irritação nos órgãos genitais, brincadeiras agressivas e sexualidade exacerbada são alguns dos sinais mais evidentes no comportamento das crianças vítimas de abuso. A perturbação na mente da criança é tão grande que ela sofrerá um transtorno de estresse traumático que deve ser tratado imediatamente. A indicação é o tratamento psicoterápico, predominantemente o cognitivo-comportamental, que se foca nas conexões entre o que uma pessoa pensa sobre si mesma – ou sobre a situação – e como isso afeta a maneira como ela age. Assim, ela fica concentrada basicamente no que está ocorrendo em sua vida no momento, em vez de se deixar afetar por fatos do passado. A terapia também pode ser usada com medicação, dependendo da gravidade do problema. A psicanálise familiar é outra indicação preciosa e preventiva. A criança que não for tratada imediatamente pode sofrer o transtorno de estresse pós-traumático, com consequências sérias, como depressão, tentativa de suicídio, psicose, transtornos de personalidade e falta de regulação emocional e de raciocínio.
Um assunto tão relevante e polêmico merece ser discutido pela comunidade científica e pela sociedade. O incesto será o tema central do 2º Congresso Internacional e do 2º Congresso Brasileiro sobre Ofensas Sexuais, a serem realizados em Belo Horizonte, no auditório da Faculdade de Medicina da UFMG, de 30 deste mês a 2 de maio. O encontro terá a participação de doutores e coordenadores de importantes pesquisas em vário países para discutir como funciona a mente de pais incestuosos, as alternativas de tratamento de agressores, o aspecto genético da ofensa sexual, a história do incesto no Brasil, a abordagem do assunto em outras culturas, a visão da psiquiatria forense e o tratamento das vítimas e das famílias incestuosas. |
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