Há intensa discussão, na doutrina e na jurisprudência, acerca da possibilidade ou não de concessão de liberdade provisória a autores de crimes hediondos e equiparados, especialmente em relação ao delito de tráfico ilícito de drogas.
No âmbito jurisprudencial, é de se destacar que o Supremo Tribunal Federal (STF) assentou entendimento segundo o qual há proibição constitucional (inciso XLIII do artigo 5º da Constituição da República de 1988) e legal (artigo 44 da Lei 11.343/06) para a concessão de liberdade provisória em favor dos acusados pelo crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, o que, por si só, é fundamento para o indeferimento do pedido de liberdade provisória.
Não obstante, depois de intensa reflexão sobre o tema, e com a devida vênia dos doutos entendimentos em contrário, nos convencemos de que não há que se falar, legitimamente, em vedação abstrata e absoluta à concessão de liberdade provisória, seja em relação a que crime for.
De fato, como é sabido, a Constituição da República de 1988 afirma, categoricamente, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (inciso LVII de seu artigo 5º).
Esse ambiente normativo leva, necessariamente, à cautelaridade de toda e qualquer prisão provisória, vale dizer, anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Dessa forma, a prisão provisória submete-se a rigorosa cláusula de necessidade, sendo de destacar as palavras do ministro Gilmar Mendes – amparadas nas lições de Claus Roxin – no sentido de que “a diferença entre um Estado totalitário e um Estado (Democrático) de Direito reside na forma de regulação da ordem jurídica interna e na ênfase dada à eficácia do instrumento processual penal da prisão provisória” (M.C. no H.C. 95.009/SP, em 9.7.08).
Outra não poderia ser a interpretação da custódia antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, haja vista se tratar de medida gravemente restritiva do status libertatis dos cidadãos.
A questão que se coloca, relativamente à prática da tortura, ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, bem como ao terrorismo e aos crimes definidos como hediondos, é a interpretação que se deve dar ao vocábulo “inafiançáveis”, previsto no inciso XLIII do artigo 5º da Constituição da República de 1988.
Nesse aspecto, entendemos que não se pode interpretar o termo de forma ampliativa, tendo em vista que se trata de restrição ao direito constitucional fundamental de liberdade, bem como tendo em vista ser o Brasil um Estado Democrático de Direito a reclamar absoluta excepcionalidade das prisões provisórias.
O princípio da unidade da Constituição, bem como o próprio método sistemático de interpretação de normas jurídicas, leva à mesma conclusão, na medida em que, desde a edição da Lei 6.416, em 24 de maio de 1977, o sistema jurídico brasileiro faz a distinção entre liberdade provisória com fiança e liberdade provisória sem fiança, distinção essa abraçada pela própria Constituição da República de 1988, que, em seu artigo 5º, inciso LXVI, determina que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
Assim, fazendo a Constituição da República de 1988 distinção entre liberdade provisória com fiança e liberdade provisória sem fiança (inciso LXVI de seu artigo 5º), não há como admitir que o vocábulo “inafiançáveis”, previsto no inciso XLIII do artigo 5º da mesma Constituição, abranja a liberdade provisória sem fiança.
Ademais, deve-se destacar que a vedação abstrata e absoluta à concessão de liberdade provisória com ou sem fiança implicaria a manutenção automática e indefinida da prisão em flagrante, sendo certo, contudo, que essa modalidade de custódia cautelar presta-se apenas a impedir a consumação ou o exaurimento do crime, bem como a possibilitar a coleta imediata dos elementos de prova existentes no local do delito, reclamando a custódia cautelar, depois disso, novo título, sob pena de se revelar nítida antecipação de pena, o que não se admite (inciso LVII do artigo 5º da Constituição).
No âmbito infraconstitucional, deve-se ressaltar que a Lei 11.464, editada em 28 de março de 2007, alterou o inciso II do artigo 2º da Lei 8.072/90, destacando que “os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...) II – fiança”, tendo afastado a menção, até então existente, à “liberdade provisória”, que passou, portanto, a ser permitida, no âmbito infraconstitucional, desde a edição da Lei 11.464/07.
Assim, restando tacitamente revogados os dispositivos que proibiam a liberdade provisória sem fiança em relação aos aludidos crimes, entre eles o artigo 44 da Lei 11.343/06, relacionado ao crime de tráfico ilícito de drogas, tem-se que nem sequer há necessidade de realização de controle de constitucionalidade nesse caso, haja vista a perfeita harmonia entre o plano constitucional e o infraconstitucional.
Assim, à guisa de conclusão, entendemos que toda e qualquer custódia cautelar – inclusive as relacionadas aos crimes hediondos e equiparados – deve ser examinada à luz das hipóteses previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP), devendo haver concessão de liberdade provisória sem fiança sempre que a prisão preventiva não for cabível na espécie.
Um comentário:
Muito bom!
Poderia eu conhecer o rosto desta mente brilhante?
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