Ecos do racismo institucional



Cleidiana Ramos

Em tempos de discussão sobre políticas públicas para a população negra, às vezes acabamos por esquecer o quanto estas conquistas, ainda poucas diante da sua necessidade, são recentes.

O jornalista, poeta, inclusive membro da Academia de Letras da Bahia, e editor-chefe de A TARDE , Florisvaldo Mattos, localizou uma preciosidade do que podemos caracterizar como racismo institucional do Estado brasileiro. Vale, inclusive, para quem está pesquisando o tema.

Trata-se do texto intitulado Censo das Favelas. Aspectos Gerais. O estudo foi realizado entre 1947 e 1948 pela Prefeitura do Distrito Federal, Secretaria de Interior e Segurança e o Departamento de Geografia e Estatística, o precursor do IBGE. O trecho é da página 11 de um relatório de 33 páginas. Prestem atenção no raciocínio do Estado sobre a população negra e a sua situação de pobreza:

“Muitas considerações já foram tecidas relativamente à eugenia, mas as autoridades competentes têm mostrado certas reservas no trato dos diversos fatores suscetíveis de melhorar a raça humana. Para os nossos propósitos, tomaremos os favelados essencialmente como são constituídos e examinaremos o que deles se pode esperar de acordo com as realidades, tanto sob o ponto de vista econômico, como social e moral.

O preto, por exemplo, via de regra não soube ou não poude aproveitar a liberdade adquirida e a melhoria econômica que lhe proporcionou o novo ambiente para conquistar bens de consumo capazes de lhe garantirem nível decente de vida. Renasceu-lhe a preguiça atávica, retornou a estagnação que estiola, fundamentalmente distinta do repouso que revigora, ou então - e como êle todos os indivíduos de necessidades primitivas, sem amor próprio e sem respeito à própria dignidade - priva-se do essencial à manutenção de um nível de vida decente, mas investe somas relativamente elevadas em instrumentária exótica, na gafieira e nos cordões carnavalescos, gastando tudo, enfim, que lhe sobra da satisfação das estritas necessidades de uma vida no limiar da indigência”.

Algumas considerações que podemos fazer sobre o pensamento do Estado brasileiro de então:

A pobreza era culpa da população negra, que trazia como traço característico a preguiça e o dom de gastar tudo com inutilidades. A liberdade que lhe foi concedida, com o fim da escravidão, foi um benefício que ela nunca soube aproveitar.

Se formos analisar bem, este pensamento, que o Estado expunha sem nenhum constrangimento, tem pouco mais de 60 anos. Daí que mais uma vez volto aqui há um tema que tratamos na semana passada com o gancho da substituição na Semur.

É mais do que necessário e urgente uma maior fiscalização sobre a forma como estão sendo conduzidos estes órgãos voltados para resolver as questões de desigualdades por conta de etnia nas três esferas: município, estado e União.

Este deve ser um compromisso de todos nós. Criticar e ficar de braços cruzados só faz com que as poucas políticas existentes percam sua força ou fiquem ainda mais desacreditadas.

O Estado brasileiro, em todas as suas instâncias, tem uma dívida secular com a população negra e não tem o direito de postergar ainda mais este pagamento. E, nós, sociedade civil, constantemente, esquecemos o poder- e isto não é clichê- que a nossa organização possui. Acordemos então.

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