Entrevistas
Enquanto um bairro nobre vai se constituindo numa zona até poucos anos esquecida em Canoas, uma comunidade quilombola ali estabelecida aumenta sua luta por reconhecimento do seu espaço e dos seus direitos. É a comunidade Chácara das Rosas. A professora Elsa Avancini estuda a história do Brasil e da África e a situação dos quilombolas no país e, há alguns anos, apoia a Chácara das Rosas, que está quase finalizando, com sucesso, o processo de reconhecimento e titulação de suas terras. Isso, segundo a professora, “representa uma esperança na medida em que o reconhecimento como comunidade permite que os quilombolas tenham acesso a uma série de projetos que o governo federal apresenta hoje para auxílio”. Elsa nos falou sobre o reconhecimento, pelo governo federal, do primeiro quilombo urbano, explicou as diferenças entre os quilombos localizados nas grandes cidades e aqueles das nas zonas rurais e, ainda, falou do papel da mulher dentro das comunidades quilombolas que existem hoje. “Na história das comunidades, muitas vezes foram as mulheres que tiveram papel fundamental na sustentação da comunidade; eram elas que trabalhavam fora, como domésticas, e traziam o salário para ajudar a comunidade”, contou. Elsa Avancini é graduada em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é mestre em História Social, pela Universidade de São Paulo, e doutora em História, pela UFRGS. Atualmente, é membro da Comissão Científica das revistas Diálogo e Mouseion. Também é professora de História do Brasil e História da África no PPG em Educação e em Memória Social e Bens Culturais do Unilasalle. Confira a entrevista. IHU On-Line – No mês passado, o país reconheceu o Quilombo da Família Silva, em Porto Alegre, como o primeiro quilombo urbano do Brasil. O que isso significa? Elsa Avancini – Para mim, isso significa um grande passo no processo das comunidades quilombolas do país, seja rural, seja urbano. O reconhecimento dos quilombos urbanos é um avanço bastante grande em relação aos processos anteriores que só identificavam os quilombos rurais. Sabemos que temos, no meio urbano, comunidades que vivem desde o pós-abolição em áreas que são comuns e hoje estão incrustadas em espaços que um dia foram comunidades rurais. Acho justo que esse reconhecimento atinja também essas comunidades. IHU On-Line – Como se organiza um quilombo urbano? Elsa Avancini – A organização de um quilombo urbano é, do ponto de vista da comunidade, coletiva, espontânea. Além disso, o seu reconhecimento hoje está enquadrado em toda a legislação que surgiu a partir da Constituição de 1988, instituindo o reconhecimento dessas comunidades. Sua organização é interna e realizada de acordo com a sua forma de viver e com a sua cultura, obedecendo a padrões da comunidade. Os temas trabalhados pelos antropólogos e cientistas sociais nessas comunidades respeitam a identidade cultural e a forma de organização dos quilombos. IHU On-Line – Em que sentido a comunidade negra do país avança com o reconhecimento dos quilombos urbanos? Elsa Avancini – A comunidade negra do Brasil avança no sentido de que pela primeira vez na história tem direito de ser reconhecida. Reconhecimento eu entendo como uma política compensatória, já que no pós-abolição os negros foram libertados do cativeiro depois de trabalharem 400 anos pela riqueza do país e nada lhes foi previsto como compensação. Hoje, ao reconhecer essas comunidades, a sociedade está fazendo esse processo de compensação, que visa alavancar essas comunidades negras que até hoje têm problemas de pobreza e marginalidade social, recorrentes desse processo histórico. IHU On-Line – O Quilombo Chácara das Rosas, em Canoas, está localizado numa área de expansão imobiliária para classe média alta. O que isso representa? Elsa Avancini – O processo de reconhecimento da comunidade Chácara das Rosas, que está em via de finalização e titulação, representa uma esperança extraordinária. Porque em torno de 90 famílias vivem num terreno pequeno e elas não têm uma forma específica de sobrevivência. Os seus índices de alfabetização são muito baixos, o que, para elas, representa uma esperança, na medida em que o reconhecimento como comunidade lhes permite que tenham acesso a uma série de projetos que o governo federal tem hoje para auxílio, inclusive para sua própria viabilização econômica. O que eu sinto é que a comunidade quilombola encontrou nesse processo de reconhecimento a esperança. Isso é um fator importante para comunidades marginalizadas, que muitas vezes desacreditam nas possibilidades de melhoria. Nesse momento, eles veem uma luz no fim do túnel. IHU On-Line – De que forma as mudanças enfrentadas pelo município tiveram impacto para os quilombolas de Chácara das Rosas? Elsa Avancini – Canoas está vivendo um grande momento, no qual onde a administração municipal está procurando auxiliar essa comunidade no sentido de que ela conclua o seu processo de titulação e possa receber auxílio do governo federal. Esses auxílios vêm através da municipalidade, que reconhece a comunidade no seu planejamento urbano. A própria comunidade já se fez representar nas reuniões municipais de organização e planejamento urbano. A nova administração já está em contato com a comunidade no sentido de atender as necessidades do grupo que lá vive. A comunidade desse quilombo vive num bairro nobre da cidade e não há por que suas habitações também não tenham um caráter melhor, para que se sintam melhor nesse bairro e possam olhar de frente para seus vizinhos sem se envergonhar de suas casas. IHU On-Line – Como a senhora define a relação que os quilombolas têm com a terra? É uma relação semelhante a que os índios têm? Elsa Avancini – Essa questão já foi pensada no Brasil através do Instituto Nacional de Reforma Agrária que, quando conduziu o reconhecimento das comunidades quilombolas e estabeleceu os decretos para o estabelecimento dessas comunidades, reconheceu aos indígenas as terras necessárias para sua sobrevivência e para produção de sua sobrevivência. Às vezes, as comunidades urbanas não têm mais como reivindicar em torno, pois o quilombo já está todo balizado pelas construções, pelo bairro que já avançou. Em outros lugares, as terras onde as comunidades vivem são necessárias a sua sobrevivência econômica. Essa interpretação me parece válida, não há por que termos uma legislação para os indígenas e outra para os quilombolas. Em março de 2008, tínhamos no RS 182 comunidades identificadas e com 35 processos abertos, ou seja, há uma grande quantidade de comunidades aqui no estado. A Constituição de 1988 e o decreto 4887 permitiram que essas comunidades procurassem auxílio. Como elas não tinham apoio algum, as comunidades pobres e negras iam aos cartórios, onde eram mandados de uma repartição a outra, e não conseguiam reconhecer seu espaço. Isso tornou a luta muito mais difícil. IHU On-Line – Como o meio que os quilombolas buscam construir pode ser um exemplo da ecologia dos saberes e da participação popular? Elsa Avancini – Em especial, a comunidade Chácara das Rosas, onde eu fiz entrevistas, tem uma memória do meio ambiente local muito intensa e bonita, relembrando traços do espaço que hoje são diferentes. Hoje, essa área é urbanizada, e os arroios, em parte, estão canalizados. Por outro lado, essa mesma comunidade tem participado do projeto Arroio Araçá, Nosso Rio Guri, além de ajudar nas ações de limpeza do arroio e participar no sentido de preservar o meio ambiente, a fauna e flora da cidade. IHU On-Line – Quais são os principais desafios e expectativas dos quilombos urbanos? Elsa Avancini – Eu acredito que um dos grandes desafios seja a solução dos problemas que afetam a pobreza. A questão da sobrevivência material está relacionada com emprego. Por sua vez, a questão de saúde é muito problemática, em função da pobreza, das características étnicas dessas comunidades e da educação. Essas questões, se solucionadas, permitem que as comunidades alavanquem e faz com que suas crianças e jovens tenham chance de ter um futuro melhor. Essas comunidades precisam de educação e do apoio das escolas. Nas entrevistas que fiz, percebi que é muito comum encontrar crianças que repetiram o ano escolar consecutivamente, mantendo-se o problema. Se essas comunidades não tiverem um apoio escolar no turno da tarde, as crianças ficam à solta, sem ninguém para cuidar, por isso é preciso um programa de assistência. Os desafios estão aí: na questão da moradia, do sanitarismo, da saúde e da educação. IHU On-Line – Por que a historiografia não faz referências, especificamente, a quilombos no Rio Grande do Sul? Elsa Avancini – A historiografia rio-grandense não faz referência aos quilombos no Rio Grande do Sul, assim como não faz referência à história do negro no estado. Alguns historiadores, como o Mario Maestri, afirmam que a presença do negro no estado tem sido minimizada e esquecida. Não se reconhece, aqui, a força da escravidão e se diz que ela foi mais branda, o que não é verdade. O Rio Grande do Sul usou o negro e o seu trabalho na charqueada em grande escala, assim como nas lidas campeiras, onde eram em menor número, mas estavam presentes. Vários historiadores e sociólogos, como Fernando Henrique Cardoso, já falaram sobre isso. Esse é o lado esquecido no Rio Grande do Sul, o que ainda precisa ser contado. Por isso, o fato de saber que há 132 comunidades quilombolas ainda gera surpresa. IHU On-Line – Qual o papel das mulheres na organização cotidiana das comunidades e nas lutas do seu reconhecimento público? Elsa Avancini – O papel das mulheres é fundamental. Tenho visto em algumas comunidades que as mulheres foram as grandes lutadoras e fazem parte das lideranças do movimento hoje. As grandes lutas em torno do reconhecimento muitas vezes têm sido comandadas por elas. Na história das comunidades, muitas vezes foram as mulheres que tiveram papel fundamental na sustentação da comunidade; eram elas que trabalhavam fora, como domésticas, e traziam o salário para ajudar a comunidade. Hoje, inclusive, é uma mulher que dirige a comunidade quilombola Chácara das Rosas. | ||
Fonte: UNISINOS |
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