O crack fugiu da favela



por Regina Abrahão*

Historicamente a humanidade fez uso de alcalóides diversos, que em níveis variados alteram a percepção e os sentidos, com múltiplas finalidades. Drogas foram usadas no intuito de facilitar a intermediação com o divino, provocar previsões, induzir transes coletivos e como elemento de confraternização.


A Bíblia faz citações ao uso do vinho; folhas de tabaco e de coca eram usadas já há mais de cinco mil anos nas Américas. Pouco depois, índios da América Central descobrem o potencial alucinógeno de determinados tipos de cogumelos, enquanto a maconha na mesma época era consumida na Europa central, Egito e China.

Em seguida alguém reparou que as alterações provocadas pelo uso de drogas poderiam ter outras finalidades, como facilitar condicionamento coletivo em soldados em guerra, aguçando a agressividade ou neutralizar a capacidade de reação de populações. Relatos de soldados bêbados ou drogados existem desde a antiguidade. O vocábulo assassino deriva de hashshishin, que significa fumador de haxixe, hábito de um grupo de soldados árabes extremamente violentos que atuou até meados do século 13.

Outras guerras e outras drogas seguiram-se, como a Guerra do Ópio, onde a Inglaterra impôs a liberação do comércio desta droga na China, oriunda da Índia (o que culminou com a dominação inglesa sobre a China). A morfina foi amplamente utilizada durante guerras do século 19, como a Guerra Civil dos EUA (1861-65), a Guerra Austro-Prussiana (1866) e a Franco-Prussiana (1870-71).

Anfetaminas, chamadas pelo exército alemão de “Droga Milagre” foram largamente consumidas durante a Segunda Guerra Mundial. O exército aliado, por sua vez, recebia além das anfetaminas tabaco e álcool. O cigarro teve a partir desta época seu pico de consumo. Mais tarde, no Vietnam, cerca de 30 mil soldados retornaram aos EUA dependentes de heroína. A idéia original era popularizar o uso desta droga para a população, que não aderiu ao uso como previsto. Ao contrário, foram os soldados estadunidenses, pressionados pelos horrores da guerra que tornaram-se viciados. No fim da guerra, a heroína popularizou-se nos EUA. Situação semelhante ocorre hoje no Afeganistão, onde rígidas regras de conduta religiosa impedem que parte da população faça uso de
álcool ou drogas, ambos largamente usados por soldados de tropas
européias e estadunidenses.

Permitido, proibido, incentivado ou dissimulado, o uso de drogas não pode ser visto dicotomicamente como deslize moral ou estilo de vida. A função da droga na sociedade, seu lugar no ranking mundial como segundo negócio mais rentável, seu poder de empossar e destituir governos é inegável. Isto em se tratando apenas das drogas ilícitas, lembrando que o consumo de álcool, tranqüilizantes, antidepressivos, tabaco e anorexígenos superam, e muito, o consumo das drogas ilegais.

O poder da indústria farmacêutica e o desenvolvimento de novas panacéias capazes de anestesiar quaisquer sofrimentos humanos, o estabelecimento de limites entre o legal e o ilegal neste tipo de situação ignora princípios da ética médica.

O apelo social do capitalismo, com sua ênfase no ''ter'' ao invés do ''ser'' é
um campo fértil para a disseminação das chamadas drogas duras. Não por acaso, a popularização do uso da cocaína deu-se na década de 80, justamente a década perdida, do culto ao individualismo, dos yupies em contraposição aos hippies. Logo depois surge o crack como subproduto, destinado as classes D e E, justamente por causa de sua letalidade e baixo preço.

Por algum tempo o crack ficou restrito aos guetos das grandes cidades. Atingindo principalmente adolescentes pobres, aumentando tanto os índices de criminalidade quanto a crueldade e banalidade dos atos infracionais praticados. O preço da vida, para um dependente em abstinência, pode ser o preço de uma dose. Pouco tempo atrás, em Porto Alegre, a crônica policial noticiou o assassinato de um rapaz por sua mãe. 24 anos, filho único, loiro, classe média alta, viciado em crack e histórico com mais de 10 internações, além de condenações policiais por pequenos furtos e longa lista de agressões a familiares e conhecidos.

A disseminação desta nova droga, ao sair da favela e invadir bairros nobres provocou na sociedade uma “comoção” diferente de antes. O
rapaz loiro, classe alta, assassinado pela mãe, ganhou notoriedade, chocou o estado e foi notícia nacional. Mas qualquer breve pesquisa nos leva a dezenas de casos similares anteriores, de rapazes e moças, só que nem tão loiros, e em e vilas populares, a maioria com bem menos que 24 anos, assassinados por pais ou mães, abandonados, sem moradia, sem escola, sem leitos para tratamento, sem perspectiva nenhuma maior do que a morte próxima.

Seria demais pensar nas centenas ou milhares de jovens adolescentes viciados em crack que morrem todos os dias e sequer fazem parte das estatísticas? De crianças que hoje já são dependentes? De crianças geradas por mães usuárias, e todas as complicações decorrentes? Seria paranóia esquerdista pensarmos no crack como política de extermínio para esta incômoda parcela excedente da população? Afinal, para eles faltam vagas em quase tudo... escolas, trabalho, assistência médica e social, lazer, profissionalização. E isto tudo tem um alto
custo social, e particular, refletido nas grades, na segurança privada, nos presídios lotados. É a falência do deus mercado gerindo a sociedade.

O faturamento da indústria farmacêutica mundial em 2007 atingiu a cifra de 300 bilhões dólares, e esta área é justamente uma das que mais recebe investimentos para pesquisa. Qual a dificuldade, então, para que sejam desenvolvidos medicamentos de combate à dependência química? Quais as terapias que realmente funcionam, no combate à dependência? O que dizer das “fazendas” terapêuticas, dirigidas por religiosos sem formação médica, em regime quase militar? O que fazer, então, uma vez que, sabidamente, a rede pública comprovadamente não consegue suprir a demanda?

Pelo que dizem médicos e especialistas em drogadição, ela não tem cura, tem apenas controle e estagnação, com acompanhamento e tratamento. Isto relacionado a maioria das drogas, excluindo-se delas o crack nos estágios finais. Então: O que fazer com esta parcela de já usuários crônicos? Como impedir que mais e mais jovens sejam usados pelo sistema através de suas drogas lícitas e ilícitas, atrás de uma perspectiva ilusória de vida? Sim, por que o crack hoje é epidêmico, mas novas drogas são criadas a cada momento, dependendo da
rentabilidade, da perspectiva do consumo e do uso que pode ser feito delas.

Parece repetitivo. Cansativo. Mas a resposta, repetida cansativamente, e infelizmente não ouvida, salta aos olhos e não é vista: enquanto o capitalismo for o sistema dominante, serão estas e outras agruras a alimentar os sonhos de parte de nossa juventude, e a anestesiar o que bem poderiam ser as dores da revolta de toda uma civilização amordaçada.




*Regina Abrahão, é do Rio Grande do Sul, funcionária pública estadual, dirigente de políticas sociais do
Semapi, da CTB e do PCdoB de Porto Alegre, coordenadora do núcleo Cebrapaz, estuda Ciências Sociais na UFRG.



* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.

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