Os lemas do Grito dos Excluídos, anualmente, apontam os grandes desafios do povo brasileiro na luta pela construção de uma pátria livre, justa e soberana. Este ano não é diferente. Diante da crise do sistema capitalista, que em suas feições econômica, ambiental e alimentar, prejudica principalmente o povo trabalhador, já que os ricos sempre encontram uma forma de se safar, o Grito ressalta o grande desafio para o nosso povo na atualidade: organizar-se e mobilizar-se para construir um projeto popular para o Brasil que transforme as estruturas desta sociedade profundamente injusta e insustentável.
Duro cenário para a organização popular: Vivemos em uma era de hegemonia da competição, do consumo, do espetáculo (o falso se sobrepondo ao real), do poder do capital sobre os mais diversos aspectos da vida social. E o capital não é democrático, não é justo, não é sequer sustentável – como demonstra a atual crise multifacetada – econômica, ambiental e alimentar.
Essa ordem de coisas não é natural. Basta olhar além da superfície daquilo que as instituições capitalistas querem nos fazer crer. A própria natureza nos dá o exemplo de como os ecossistemas funcionam – interligados, interdependentes, interagindo de forma cooperada. Isto é natural. O sistema capitalista e sua forma de organizar a sociedade é que não têm nada de natural, ao contrário, está destruindo a natureza e colocando a vida em último lugar na escala de valores.
A história do nosso povo também nos dá exemplos de organização solidária: As duas principais matrizes populares do Brasil, afro e indígena, organizavam-se em sociedades que tinham a solidariedade e cooperação mútua, além da harmonia com o meio ambiente, como base da organização social. Porém, esses modelos foram destruídos pelo modelo mercantilista europeu, baseado na exploração da maioria para acúmulo de riquezas por poucos. Mas esta solidariedade e cooperação sempre voltam em forma de resistência popular. Foi assim no quilombo dos Palmares, Canudos, Caldeirão e tantas experiências que buscaram construir alternativas de liberdade e igualdade em nosso país, a partir dos de baixo, sem propriedade privada, onde todos trabalham e colhem o fruto deste trabalho. Também, mais recentemente, nas ocupações de terra no campo e na cidade, vimos o espírito coletivo e solidário se sobrepor ao individualismo de todos contra todos. E o que seriam das históricas greves operárias sem a capacidade de organização e solidariedade de classe dos trabalhadores brasileiros.
O golpe militar de 1964 veio para destruir a crescente organização popular que lutava por um Brasil melhor para o seu povo: camponeses, operários, estudantes foram violentamente reprimidos e suas organizações destruídas. Ou seja, os capitalistas usaram a força bruta para impedir que o povo organizado construísse um Brasil livre, justo e solidário.
A década 80 registrou a retomada da organização popular de massa no Brasil. As Comunidades Eclesiais de Base e Pastorais sociais, o movimento comunitário nas cidades, ainda sob a ditadura militar, avançaram na organização do povo. Com a chamada reabertura, eclodiram as lutas sociais e nasceram grandes organizações de massa que retomaram a luta por um Brasil centrado no bem estar do povo trabalhador. Foi a fase áurea das grandes greves, ocupações de terra, manifestações políticas... Mais uma vez o povo brasileiro mostrou que a organização e a luta popular estão no seu DNA.
Porém, mais uma vez o sistema capitalista se impôs, com sua lógica de luxo para poucos e opressão para a maioria. Desta feita o povo foi derrotado pela ditadura do neoliberalismo. Nesta fase do capitalismo, a produção de mercadorias foi reorganizada de forma a aumentar os lucros e enfraquecer o mundo do trabalho e, conseqüentemente, das organizações sindicais que tiveram papel fundamental nas lutas do período anterior. Junto com o aumento do lucro para a burguesia veio o aumento do desemprego. As finanças passaram a ser o centro do sistema e o caminho mais fácil para a acumulação. A produção foi fragmentada, alienando ainda mais o trabalho humano. Soma-se a isso a retirada de direitos dos trabalhadores e a precarização crescente do mundo do trabalho. O Estado deixou de cumprir obrigações para com o povo, de maneira a transferir ainda mais renda para o mercado financeiro (através de pagamentos bilionários em juros da dívida pública que quanto mais se paga mais se deve) e para o capital internacional através da privatização de empresas estatais que exploram recursos naturais (como a Vale do Rio Doce e a própria Petrobras que hoje é mais privada do que pública)e até de serviços sociais como previdência, saúde, educação etc. Todo este cenário é coroado pelo controle ditatorial do capital sobre os meios de comunicação de massa, que condicionam o povo a esta realidade como se não houvesse alternativa – meios que mentem, omitem fatos, manipulam, e operam deliberadamente para destruir a cultura popular a fim de que reine absoluta a cultura de mercado.
Junto ao duro golpe do neoliberalismo veio o vazio do projeto de poder eleitoral da esquerda. Diante do descenso da capacidade de organização do povo, os partidos de esquerda foram recuando cada vez mais no seu horizonte de mudanças. Quando finalmente ganharam eleições, limitaram-se administrar a ordem existente, contentando-se em tentar democratizar um pouco o Estado, que é engessado pelos interesses da burguesia, e promover alguma distribuição de renda, desde que não afete as estruturas de acumulação e poder das classes dominantes.
Porém, o povo brasileiro nunca parou de se organizar e lutar. Mesmo sob o jugo do neoliberalismo, o Brasil viu florescer e consolidar um dos mais importantes movimentos camponeses do mundo. Mesmo a população rural sendo menos de trinta por cento da população, sem terras e pequenos agricultores têm dado enormes dores de cabeça ao capital e aos governos a seu serviço. Junto com eles, vimos reflorescer os quilombolas e se reforçar a luta indígena. Quem sempre foi carvão humano a ser triturado para gerar riqueza para elites estrangeiras e nacionais, desenvolvem hoje as mais radicais, profundas e inspiradoras lutas contra o controle do capital sobre as riquezas paridas em terras brasileiras pelas mãos de nossa gente.
Agora esse sistema que subjuga nosso povo está em crise. As massas de trabalhadores nas cidades que sempre tiveram que lutar por moradia, infra-estrutura urbana, trabalho etc, precisarão atingir elevados patamares de organização para enfrentar as dificuldades que se intensificarão, pois nas crises capitalistas são sempre os trabalhadores que pagam a conta. Mais do que enfrentar as dificuldades, precisamos nos organizar para superar este sistema e construir uma nova era. É esse desafio que o lema do grito ressalta este ano.
Precisamos construir organização popular autônoma, ou seja, onde os que se organizam decidam os rumos da sua luta sem manipulações eleitorais ou econômicas. Se o poder político institucional não é suficiente para transformar nossa realidade, pois se ganha o governo mas não se toma o poder que está sob o controle das elites, devemos construir o Poder Popular. Devemos construir instâncias populares de tomada de decisões, como as Assembléias Populares, e impor as decisões tomadas pelo povo por meio da mobilização direta. Devemos ter os nossos próprios meios de comunicação, com ou sem autorização do Estado. Devemos construir os nossos grupos de produção e redes de comercialização, sem perder de vista a necessidade de os trabalhadores assumirem toda a produção, sem patrões. Devemos valorizar e fortalecer a cultura popular e suas formas de expressão, em antagonismo à cultura de mercado.
Enfim, são muitos os desafios, mas um único caminho para começar a enfrentá-los: nos organizarmos nos bairros, comunidades, ocupações, escolas, sindicatos, igrejas... Com organização, formação e mobilização, construiremos uma verdadeira esquerda social e política, anticapitalista e enraizada no povo trabalhador, pois a FORÇA DA TRANSFORMAÇÃO ESTÁ NA ORGANIZAÇÃO POPULAR.
*Advogado, da equipe de formação do Grito dos(as) Excluídos(as) de Fortaleza e militante do Movimento dos Conselhos Populares.
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