Hip hop nas ruas e nos projetos

A cena não é difícil de ser vista nas grandes cidades, principalmente em suas áreas pobres: ao som de raps, grupos de jovens dançam break, pintam muros com suas latas de spray e fazem rimas com batidas ao fundo. Os temas dos grafites – como são chamadas as pinturas – e das músicas – os raps – quase sempre abordam o cotidiano de quem ainda tem pouca idade, é negro e mora em regiões por muitos anos esquecidas pelo poder público. São comuns desenhos sobre a repressão policial e letras sobre como é difícil arrumar um emprego e fácil ser discriminado por sua raça. O relato da violência nas periferias está presente em muitas canções.

Por falar da realidade vivida por um enorme número de pessoas, o hip hop, nome da cultura que engloba todos esses elementos, já se tornou um fenômeno. Vende milhares de discos, mobiliza a juventude, colore o cinza das cidades e produz moda sem esquecer as discussões políticas. O que antes era considerado coisa de marginal por boa parte da sociedade é hoje um dos mais úteis instrumentos de inclusão social, utilizado como ferramenta de diversos projetos e com forte influência na juventude. Tanto que foi reconhecido até pelo governo federal como fator importante das políticas públicas voltadas para essa parcela da sociedade (veja box ao lado). Mas agora encara o desafio de se manter fiel às raízes para não perder a vocação política devido ao crescimento.

A origem do hip hop está na década de 60, época em que o movimento de luta pelos direitos civis nos EUA se fortaleceu e valorizou a cultura negra. Nessa época começam a surgir os mestres de cerimônia (MCs), que cantam as músicas; os disc-jockeys, cuja função é colocar os discos na vitrola e, às vezes, “misturar” as músicas; os grafiteiros e os dançarinos de break. A dança, aliás, surgiu como protesto contra a guerra do Vietnã, pois imitava os movimentos dos feridos em combate. As coreografias são “quebradas”, daí o nome. O termo “hip hop”, também vem dos movimentos: hip quer dizer quadril e hop, salto.

Poesia, música, dança e artes plásticas, portanto, são os quatro elementos do hip hop.

Por muito tempo o estilo ficou segregado nos guetos negros norte-americanos, mas tornou-se rapidamente um canal de expressão da juventude, por causa das letras dos raps. “Não me empurre, pois estou perto do limite. Estou tentando não perder a cabeça. Às vezes isso é como a selva e me faz imaginar como não afundar”, dizia o norte-americano Grandmaster Flash no refrão de “The Message”. A música foi lançada em 1983 e expressava a situação dos jovens negros nas ruas de Nova Iorque naquela época.

Organizados em gangues, muitos resolviam seus problemas com violência, mas a solução começou a ser alcançada também por meio da dança. Em vez de trocarem socos e tiros, faziam disputas de break durante festas animadas com caixas de som colocadas na rua. Os que levavam jeito para cantar se desafiavam na elaboração de músicas e provocavam-se ao mesmo tempo em que tentavam passar uma mensagem para a platéia. A politização daquele tempo permanece até hoje como princípio dessa cultura.

Foi nessa época que o estilo chegou ao Brasil. O centro de São Paulo era o principal pólo de hip hop do país, cuja imagem para a polícia não era das melhores. Lá foram formadas as primeiras rodas de break, onde jovens de diversas partes da cidade se reuniam para dançar ao ritmo das músicas importadas.

“Começamos na Praça Ramos de Azevedo, mas mudamos nosso ponto de encontro algumas vezes, por causa da repressão”, lembra Carlos Alberto de Souza, o Kall, integrante do movimento hip hop desde o começo dos anos 80 e hoje MC [Mestre de Cerimônias] do grupo Conclusão. O local que acabou se tornando mais famoso foi o Largo São Bento, também no Centro. “Era lá que todos se informavam e trocavam idéias. Quem sabia inglês traduzia as letras para os outros, e assim começavam as discussões”, diz Kall, que lembra a importância dos bailes de música negra, os bailes blacks, na formação musical desses pioneiros. Discos também foram trocados e surgiram os primeiros campeonatos de dança de rua.

Para ele, o primeiro boom do hip hop brasileiro aconteceu em 1984. Naquele ano, Nelson Triunfo, um “black”, como eram chamados os que gostavam de hip hop e freqüentavam bailes, participou da abertura de uma novela em rede nacional e assim popularizou a dança e o ritmo ainda mais. “O que era uma cultura de rua, do Centro, começou a ir para a periferia”, afirma Kall, que já passou mais de três horas em ônibus para se encontrar com seus “manos”. Com o crescimento da cidade, o acesso ao Centro foi dificultado e as atividades nas demais áreas se multiplicaram.

No fim da década de 80 e começo da de 90 surgiram as “posses”, pequenos grupos organizados por causa do hip hop e bastante politizados. O nome de uma das primeiras a ser fundada, em 89, demonstra isso: Sindicato Negro. Sua missão, assim como a das demais, era fazer raps, grafites, dançar, debater política e fazer atividades em favor de suas comunidades. A repressão, no entanto, continuava. Kall, lembra que em 89 um colega seu foi morto por um policial numa estação de metrô por estar cantando rap e não aceitar parar. Hoje, afirma, a situação está bem melhor, apesar de ainda haver preconceito.

Em 91 houve um evento que também é considerado marcante para o rap nacional. O grupo Public Enemy, outro pioneiro do hip hop norte-americano, fez sua primeira apresentação no Brasil, aberta pelos Racionais MCs, hoje o conjunto mais conhecido do país. A mídia deu boa cobertura e passou a prestar atenção nos brasileiros, cujas letras eram conhecidas por grande parte do público.

A partir daí, ONGs e poder público começam a despertar para o fenômeno. Em 1992 o Instituto da Mulher Negra Geledes criou o projeto Rappers, cujo objetivo era conscientizar a juventude sobre as diversas formas de exclusão social e contribuir para a organização política dos jovens da periferia. O projeto, atualmente, está desativado.

A prefeitura de São Paulo, na gestão de 1989 a 92, implementou o programa Belezura, que incentivava a pintura de muros com grafites e apoiava, por meio de outra iniciativa, o “Repensando a Educação”, a utilização dos demais elementos do hip hop como ferramentas de ensino nas escolas municipais.

Atualmente os elementos do hip hop estão difundidos em diversos projetos. Um dos mais bem sucedidos é a Casa do Hip Hop de Diadema, que funciona desde 1999 na cidade da Grande São Paulo, conhecida por suas altas taxas de criminalidade. Cerca de 2.500 adolescentes freqüentam aulas de dança, desenho e discotecagem e muitos, após se formarem, ensinam em novas turmas no próprio programa ou em outros. “Hoje 80% de nossos professores são ex-alunos”, diz Jéferson Costa, coordenador da entidade.

“Nosso principal resultado foi a diminuição da criminalidade no entorno. Tiramos jovens das ruas pregando o ‘quinto elemento’ do hip hop, a conscientização”. Costa lembra que no começo do projeto havia muitas brigas de gangues na área onde está a casa, mas elas foram substituídas por disputas de break e grafite. Como no início do movimento. A idéia deu tão certo que todos os centros culturais de Diadema hoje têm pessoas oriundas da Casa ministrando oficinas de algum dos quatro elementos.

Já o Projeto Quixote, também de São Paulo, dá aulas de grafitagem para adolescentes em situação de risco. Terminado o curso, eles produzem camisetas a partir do grafite e fazem instalações em diversos locais da cidade. Tudo remunerado. Contudo há um problema recorrente em projetos ligados ao hip hop: pais de alunos que não vêem com bons olhos o trabalho dos filhos. “Acham que são vagabundos por ficarem pintando muros, apesar de estarem fazendo arte. Mas isso está mudando”, diz Roberto Madalena, coordenador de Educação para o Trabalho do projeto. “Sempre se sonha com um emprego mais convencional, porém hoje é possível ganhar muito dinheiro com o grafite”, argumenta.

Um exemplo disso, cita Madalena, é a compra de painéis por lojas de grife, que querem aproveitar o crescimento do hip hop. Ele, no entanto, gosta mais de outras telas. “Prefiro grafitar espaços onde seja possível passar uma mensagem, como o [ex-presídio] Carandiru, a Cracolândia [região do centro de São Paulo conhecida pelo grande consumo de crack]”.

Não só ONGs fazem atividades com adolescentes. Alguns grupos não se contentam em apenas narrar seu cotidiano e também colocam a mão na massa. Um deles é o Anastácias, de Porto Alegre, composto só por mulheres – o que ainda é raro no meio. Vencedoras na categoria grupo feminino do Prêmio Hutus 2003, a maior premiação do hip hop nacional, elas, sempre que possível, visitam escolas da periferia da capital gaúcha para dar oficinas e ministrar palestras. “Valorizamos bastante a auto-estima dos negros, que são minoria em Porto Alegre”, diz a MC Denise, que reclama apenas do machismo ainda existente no meio. “Não concordamos com o ponto de vista de alguns grupos, muito agressivos em relação às mulheres. Isso não constrói nada, não aponta soluções”.

Ela, aliás, é um exemplo da atração do hip hop sobre a juventude. A gaúcha conta que não gostava de rap por achar coisa de “maloqueiro”. Mas, quando conheceu um grupo de Porto Alegre com letras interessantes, passou a freqüentar rodas de break e a ouvir rap. Para Denise, o poder de atração do hip hop se deve, além da identificação com o conteúdo, à facilidade de produção. “É muita coisa junta: dança, música, arte... e tudo fácil de fazer, não precisa de diploma. O trabalho social também chama bastante a atenção”.

Kall, entrentanto, reclama do enfraquecimento das posses e do fato de algumas ONGs chegarem às comunidades com o projeto fechado. “As posses eram feitas por pessoas autônomas, mas que se perderam por vários motivos, como falta de apoio e visão política. Já as organizações não têm a vivência daquelas pessoas e tentam padronizar as iniciativas. Ainda falta troca entre as entidades e as comunidades, além de interesse de fortalecer a cultura e o aproveitamento de quem já faz parte do movimento. Não dá certo contratar bailarino pra dar aula de break”, diz.

Apesar de todos os elogios para discursos dos integrantes do movimento, há quem alerte para as falhas. “Muitos não sabem o que dizem, compram um pensamento fechado e o difundem sem analisar”, afirma Patrícia Casseano, uma das três autoras do livro “Hip hop: a periferia grita” (Fundação Perseu Abramo). A jornalista, entretanto, ressalta a importância dessa cultura para a periferia. “O hip hop é a voz de quem está na dificuldade, não há outra forma cultural que dê voz a quem passa por isso”.

Isso pode justificar a crescente popularização do estilo. O disco “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MCs, mais famoso grupo de rap nacional, vendeu um milhão de cópias desde seu lançamento, em 1997. A marca foi atingida sem nenhum grande esquema de divulgação, somente com comentários boca a boca e a execução das músicas em rádios comunitárias. Se estivessem em uma grande gravadora, ganhariam disco duplo de diamante, prêmio da Associação Brasileira de Produtores de Discos para quem atinge essa vendagem.

Nos EUA os rappers há tempos lideram as listas de discos mais vendidos, mas isso não quer dizer que as letras continuam politizadas. “A parte musical é excelente, mas o conteúdo tem muita porcaria”, opina a MC Denise. Para as pessoas envolvidas com o hip hop, a manutenção do seu lado social é o grande desafio do momento. Kall afirma que a mudança vai acontecer e que a tendência do hip hop é sair da periferia e se tornar uma cultura de massa. “Por isso é preciso valorizá-lo como arte. A responsabilidade do enfoque é de quem produz. Não podemos esquecer que ele é uma grande ferramenta de mudança”.

Segundo Jéferson Costa, o risco está na perda de identidade do movimento. “Há um grande poder financeiro em volta e modismos. Mas acredito que o viés social não será perdido totalmente”. A opinião é compartilhada pelo educador social Alexandre Isaac, que trabalhou durante dois anos em um projeto baseado no hip hop, acredita que há um risco de o estilo ser “cooptado pelo mercado”. “Sempre há aproveitadores”, afirma.

Já o produtor musical Celso Athayde, organizador do prêmio Hutus, acredita que “quando o dinheiro aparecer, a maioria poderá seguir a trilha de suas necessidades básicas. Esse é o nosso desafio: criar nosso próprio mercado e repensar a nossa resistência”. Para Denise, contudo, o hip hop feito no país será cada vez mais brasileiro no sentido da mistura com outros estilos e de criar uma nova identidade. “Ninguém quer que aconteça o mesmo que lá nos EUA. Os temas dos raps e grafites vão variar, mas a cultura nunca irá se perder”.

Afinal, como diz Athayde, “se o hip hop não existir para salvar vida, então não é hip hop.” (Fonte: www.rits.org.br - Marcelo Medeiros)

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