Brasília – Uma das maiores pedras no caminho da reforma psiquiátrica brasileira é a mistura de cocaína com substâncias altamente tóxicas. O crack, que leva 15 segundos para chegar ao cérebro e provocar reações pelo corpo todo, transformou-se em um desafio gigantesco para a rede pública de saúde mental. Pipocam, cada vez com mais intensidade, casos de crianças e adolescentes, usuários preferenciais da droga, em unidades de atendimento. A rede que deveria dar conta desse tipo de demanda, entretanto, permanece longe do ideal. Há no país 186 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) especializados em dependência química, enquanto a meta traçada pelo governo federal, já para 2010, é de 350. No caso da infância, a situação é ainda mais crítica.
Os 101 Caps existentes no Brasil destinados a cuidar de pessoas de até 17 anos não têm estrutura para atender essa população, no total, de quase 60 milhões de crianças e adolescentes. Mesmo em clínicas psiquiátricas que, diferentemente dos centros de atenção psicossocial, trabalham com a internação para desintoxicar, os pequenos são ignorados. “Somos a única unidade do SUS que atende, na saúde mental, meninos e meninas de 6 a 12 anos no Rio Grande do Sul” , lamenta Gilberto Brofman, diretor do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. A incidência de dependentes de crack nos 10 leitos da unidade infantil da instituição é da ordem de 50%. Na ala dos adolescentes, chega a 90% o número de viciados na pedra.
No caso dos adultos, a fragilidade da rede é semelhante. “Os próprios Caps encaminham para nós. Na ala de pacientes agudos, onde deveria ter mais esquizofrênicos, 50% dos internos hoje estão por drogas, principalmente o crack”, afirma Elieuza Bacelar, diretora do Hospital Especializado Lopes Rodrigues, em Feira de Santana (BA). Depois de vencer primeiro a própria resistência, Fernando* precisou batalhar uma vaga entre 30 leitos destinados a dependentes químicos do São Pedro, na capital gaúcha. “Fumei tudo que eu podia, até minhas roupas”, diz o jovem de 28 anos, atualmente em tratamento.
Na Região Sul, 1,1% da população usou crack pelo menos uma vez na vida — percentual maior que a média nacional, de 0,7%. Os dados são do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid). Secretário estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, Osmar Terra classifica o problema como uma chaga social. “Não tem gripe suína, dengue, malária. Absolutamente nada, nos dias de hoje, é mais grave que a epidemia do crack”, diz. Nos planos de Terra, está o credenciamento de 600 leitos em hospitais gerais no estado específicos para o atendimento aos usuários da droga. Além disso, agentes do programa Saúde da Família já passaram por capacitação para verificar sinais de uso de crack durante as visistas domiciliares.
O desespero
A jornada de Daniel* passou pelo caminho típico do usuário de crack. Depois da primeira pedra, rapidamente veio a dependência, seguida de furto dentro de casa, assalto à mão armada na rua, falta de dinheiro e muita fissura. Tanta que o menino de 17 anos fez o que contraria a gana de viver associada à juventude. Quis morrer. Tentou se matar. “Vi que eu não ia conseguir ficar sem usar. Aí, me cortei com cacos de vidro”, conta.
Com as cicatrizes no braço ossudo ainda recentes, ele recebeu alta, depois de dois meses de desintoxicação. “Mas ninguém veio me buscar. Querem arrumar um abrigo para mim”, lamenta, com voz embolada, efeito dos remédios para combater a ansiedade. O menino deseja voltar para casa, mas a família, de Pelotas (RS), não retorna mais os chamados do hospital em Porto Alegre onde o garoto está. “Sei que minha mãe sofreu muito. Uma vez ela me amarrou e chamou a polícia. Mas eu queria ficar com ela”, afirma Daniel, filho adotivo, quatro irmãos.
A esperança
Uma dose diária de 20 a 30 pedras estava matando Juliana*, que começou a fumar a droga quando tinha 9 anos. Para conseguir dinheiro, assaltava apartamentos e se prostituía. O programa custava a quantia necessária para uma pedra, R$ 5. Há cerca de um mês, a menina, que morava na rua, foi levada por assistentes sociais para um local de tratamento. “Quero me recuperar, ter uma vida diferente”, diz. Além de tomar remédios, Juliana participa de brincadeiras com os colegas de internação como parte do programa de desintoxicação.
Saudade da rua, ela diz que não tem. A pedra era boa, conta Juliana, para “tirar” a fome, o frio. “Podia ficar muitos dias sem comer”, lembra a menina de 12 anos. Apesar de extrovertida, desconversa. Insiste em falar da nova vida na clínica. “Gosto de fazer tudo aqui. Tem comida. Cada dia um coloca a mesa”, explica. De repente, vai até a janela, volta com algo na mão. “Olha o meu pé de feijão, fui eu que plantei”, orgulha-se, exibindo o copo de plástico com o algodão no fundo.
* Os nomes são fictícios, para preservar a identidade dos entrevistados |
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