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Você provavelmente o conheceu em 1999. Naquele ano, a classe média ficou escandalizada com as imagens de um cantor de rap se apresentando no Free Jazz Festival portando uma arma na cintura. Nas edições dos noticiários de TV e nas primeiras capas dos jornais do dia seguinte, a acusação: _ Apologia ao crime! O mundo dá voltas e, oito anos depois, MV Bill conquistou, com muito esforço, o respeito da elite intelectual e da mídia, a ponto da principal emissora do país veicular, durante quase uma hora, seu documentário, Falcão- Meninos do Tráfico, e no famigerado, porém bastante assistido, Fantástico. Alex Pereira Barbosa (nome verdadeiro de Bill) recebeu o Repórter Rodrigo Mathias e a fotógrafa Camila Rabelo, do ESPALHAFATO, na sede da CUFA (Central Única de Favelas), na Cidade de Deus, para um bate-papo descontraído e pautado por uma grande consciência política e social.
A fama e o respeito, conquistado com seu trabalho, mudaram sua relação com o público em geral?
Antes da fama eu carregava a áurea da incompreensão. Talvez eu também ainda não tivesse aprendido a me expressar de forma clara. Não sabia usar as palavras certas para externar a revolta que eu tinha dentro de mim. Todas as vezes que eu participava de debates nas universidades, eu era banido abaixo de gritos de racista, de preconceituoso, de radical... Quando na verdade, eu sempre preguei o que eu prego hoje, só que naquela época, eu confesso que era de uma forma mais agressiva.
O que mudou de lá pra cá?
Eu amadureci. E aconteceram outras coisas na minha vida que complementaram meu discurso, trazendo uma maior compreensão para aqueles que me ouvem. Talvez só com as palavras, eu não conseguisse atingir esse público. Depois que “Falcão” foi lançado, muito mais gente passou a prestar atenção no que eu falo. As imagens causam um espanto e permitem que as pessoas conheçam uma realidade que dificilmente conheceriam só com a minha fala. As imagens ainda causam surpresa.
Estar na mídia é uma vitória sua ou uma cooptação do sistema?
Toda vez que eu tive oportunidade de ir na TV, principalmente na Globo, eu nunca foquei no que poderia ser ganho em cima de mim, mas o que eu poderia ganhar com o espaço conquistado. E eu sempre vi a mídia, de um modo geral, como uma via de mão dupla. Eles se beneficiam, mas o meu discurso também se beneficia. Eu vejo todas essas inserções na mídia de forma positiva. De certa maneira, estamos ajudando a reescrever parte da história da TV brasileira. Não acho que aparecer em um lugar como a Globo seja um ponto negativo, muito pelo contrário, a gente ajudou a empretecer um pouco mais a TV.
Alguns artistas vëm de comunidades pobre e, depois da fama, esquecem de onde vëm e viram as costas para seus antigos fãs e mesmo amigos. O que você pensa disso?
Eu já fui muito mais radical sobre esse tema. Depois eu fui amadurecendo e vendo que o que a gente critica é aquilo que a gente é. Mas eu continuo criticando aquelas pessoas que sobem na vida e esquecem de onde vêm, do passado. Esquecem que precisam lutar também para melhorar a vida das pessoas que eles deixaram pra trás.
Qual o panorama que você faz sobre esses anos de CUFA?
Quando eu vejo o que a gente conquistou, eu fico impressionado. Quando começamos, eu não imaginava que conseguiríamos fazer isso tudo. Outro dia, na final da Libra (Liga Brasileira de Basquete de Rua), eu vi o tamanho daquilo tudo e fiquei boquiaberto. É uma coisa que me deixa muito feliz, mas que foi muito difícil para conseguir. Se hoje eu tivesse que começar tudo de novo talvez nem começasse, mas é um sacrifício que vale a pena. É uma pena muito dura, mas vale.
Qual sua visão do atual estágio do Movimento Negro?
Acho que o Movimento Negro é importante, mas quando eu participava dele vi que tinha muitas falhas. A meu ver, a principal delas é a distância que ele tem da população em geral. Nos encontros que eu ia, eu sempre via as mesmas pessoas. Eu ouvia aqueles discursos belíssimos, mas que só eram ouvidos por pouca gente. O que estava querendo se criar ali era apenas uma elite intelectual negra. Eu já acho que nós devemos mesmo é conversar com o povo em geral e não restringir a discussão a um grupo apenas.
Em abril, a UNE promoveu o primeiro Encontro de Estudantes Negros da UNE, o ENUNE. Você considera esse passo dado pelo Movimento Estudantil uma vitória, mesmo que pequena, para o combate ao racismo?
Acho muito bom que um grupo de pessoas se reúna para discutir esse assunto, que é um assunto muito pouco debatido. Mas eu acho que é preciso tomar cuidado para não ficar uma coisa estigmatizada, “estudantes negros”. Estudante negro é antes de tudo um estudante como qualquer outro. Não quero que a gente crie uma classe estigmatizada entre os estudantes.
Recentemente, um jornalista influente lançou um livro chamado “Não somos racistas”, que de uma certa forma resgata a idéia de democracia racial do Gilberto Freyre. O que você acha da insistência de uma parte da sociedade nessa teoria?
Cara, eu não tenho nem mais espanto quando vejo isso. É o reflexo de uma parte da sociedade. E como é uma parte dominante, continua a existir, de forma errônea, esse pensamento de que nós não somos uma nação racista e que o problema é um desnível social. Chame como quiser. Mas se você for até esses lugares onde a diferença econômica é pior, você vai identificar qual é a cor daquelas pessoas e isso não é uma coincidência. As pessoas tentam tirar a responsabilidade do racial e colocar no social, como se isso fosse amenizar o problema, mas ele continua grave da mesma forma. Não importa como chamem, olhem e vão identificar onde está esse problema, é só dar uma pesquisada na maioria da população de rua, na maioria da população carcerária, dos desempregados, das empregadas domésticas, dos subempregados, dos analfabetos, a maioria dos jovens que mais morrem com essa violência. Já existe uma desproporcionalidade na população negra masculina; morre-se mais do que se nasce. Se não vai chamar isso de racismo o que é então? Se não for racismo é genocídio.
Você é a favor das cotas?
Eu particularmente gostaria muito que as cotas não fossem necessárias, é o que eu queria. Mas a gente vive num país tão filha da puta... Eu ia nessas palestras em universidades e comecei a identificar algumas coisas. Depois que eu descobri que o ‘E’ de UERJ é estadual e o ‘F’ de UFRJ é federal, eu pensei: Pô, mas não são esses carros importados do ano que deveriam estar aqui nesse estacionamento. As pessoas da mesma cor que eu não poderiam estar só na cozinha, na limpeza ou na segurança. Ali está o erro. As universidades publicas são usadas de maneira errada. Claro que eu não acho que deva pegar qualquer muleque na rua e colocar lá. Tem que existir um pré-vestibular para preparar essas pessoas. Já existem estudos que demonstram que a maioria dos cotistas tem tirado notas melhores do que não-cotistas. Mas também acho que as cotas não devem ser uma coisa permanente. Por isso que eu brigo muito pelo ensino de base. Temos que fazer com que os pais consigam manter os filhos na escola, para que não sejam como os meus, que tiveram que me fazer optar por estudar ou trabalhar. Quando isso acontecer, aos poucos, as cotas podem ser abolidas. Eu vi uma campanha do governo federal que era pra pedir para as empresas terem diversidade racial no quadro de funcionários. Para eles começarem a contratar negros, nordestinos, índios, qualificados que não conseguem se inserir no mercado de trabalho. É uma propaganda que dá um pouco de vergonha lá no fundo, mas se o governo federal tá pedindo é porque tá precisando né.
Você já pensou em fundar um partido uma vez, o PPPomar. Por que você preferiu fundar um partido e não entrar em um?
Eu tenho muito problema com partidos, porque toda vez que eu ia procurar um, eles me indicavam para uma “ala” que cuida do Movimento Negro. Ora, eu não quero apenas uma ala de um partido, eu quero um partido inteiro. Então eu comecei a formular a idéia do PPPomar, que era para ser um partido destinado a colocar o problema racial em pauta. O problema é que existia uma burocracia muito grande para criar o partido e nós acabamos deixando ele meio de lado e se concentrando na CUFA.
O que você acha de iniciativas como o CUCA (Centro Universitário de Cultura e Arte da UNE) ?
Acho que essa é uma ótima forma de tentar colocar as discussões políticas em pauta. É um bom modo de chegar nas pessoas, que geralmente não se interessam por política. Eu acho um jeito interessante de se iniciar um tipo de movimento, mas é claro que não podemos ficar restritos à isso. Temos que pensar também em outros temas importantes da sociedade.
Qualquer pessoa que escuta Rap percebe a diferença entre o estilo estadunidense, mais focado na diversão, e o brasileiro, mais politizado. Por que existe essa diferença?
O rap americano começou igual ao daqui. Mas, eles começaram a falar para um público maior e a mídia começou a prestar atenção neles. O problema é que a mídia não quer saber de música que fala da realidade dura, de problemas como racismo e pobreza. Eles querem só a parte da diversão, e por isso que virou isso ai que está hoje. Eu fiquei muito decepcionado quando estive naquele festival “Hip Hop Manifesto”, com o Já Rule e o Snoop Dog. Os caras vêm fazer um evento patrocinado por uma cerveja e mais um monte de outras empresas com gente de fora e chamaram de o maior evento de hip hop do Brasil! Isso me deixou puto porque a gente faz o Hutuz, que é o maior festival de hip hop da América Latina e ninguém fala nada. É revoltante.
A UNE fez a Bienal de Arte e Cultura, em janeiro, com o apoio da Rede Globo e recebeu muitas críticas de setores do Movimento Estudantil. A CUFA também contou com a cobertura da Globo na final da Liga Brasileira de Basquete de Rua. Você recebeu críticas por aceitar essa parceria?
Sim. Foram críticas vindas de pseudo-revolucionários do hip-hop e alguns débeis mentais de faculdade, que se acham revoltados e consideram que uma emissora é culpada por tudo o que acontece no país. Eu, pelo contrário, não acho que nenhuma delas é melhor ou pior que outra. Todas elas tem uma forma linear de nos tratar. Isso vai desde a emissora mais popular a mais musical. Todas elas tem o mesmo padrão de beleza, a mesma forma de se dirigir as pessoas de forma desrespeitosa. Não dão os espaços necessários para os afrodescendentes e periféricos. Então eu acho uma incoerência ser contra apenas uma. É como no hip hop. O cara fala que não vai na TV, mas faz vídeo clipe. E vídeo clipe não é para passar no telefone ou no rádio. Muitos dizem que não vão à TV, mas na verdade nunca foram convidados. Portanto recusam um convite que na verdade nunca foi feito. Eu procurei achar espaços nos lugares que eu não precisava me moldar. Não precisava mudar meu discurso, não precisava mudar minha pessoa para poder me encaixar dentro dos padrões. E todas as pessoas que me fizeram críticas por eu ter ido à Globo assistiram os programas que eu fiz na TV. Quer dizer, a Globo é tem um poder tão grande, que até os pseudo revolucionários param para assistir. Através dessa inserção na TV, de forma sincera e sem banalizar as coisas que eu faço, eu consegui ampliar meu raio de trabalho. Antigamente eu falava só pros “calça larga” que nem eu, o pessoal do hip hop. Hoje eu falo pra você, falo pra minha mãe, falo pros filhos dos meus amigos. Aí o pessoal fala que o Bill mudou, que ele era mais pesado. Claro que era! Eu falava pra mim mesmo. Então eu podia falar qualquer coisa. Hoje eu falo para um pai de família. Então meu discurso não precisa ser modificado, ele tem que ser amadurecido.
(Fonte: DCE- PUC-Rio)
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