Falar a partir do muro (Grafite latino-americano)





Berlim / Cultura - Grafite! Somente a menção da palavra faz com que tremam os muros e que mais de uma jugular ameace romper. A espécie, entretanto, é tão velha quanto o Homem. Apenas erguido, ainda cambaleante, o homo sapiens foi presa imediata da irresistível tentação de registrar tal acontecimento nas paredes de suas residências pré-históricas em Aurignac, Lascaux ou Altamira. Desde aquela época, nenhum muro esteve a salvo da inspiração de uma mão que escreve ou desenha. Deixou suas marcas nos prodígios de Gizé, nos templos maias de Tikal e nos arenosos labirintos de Susa. Foi a mesma mão que, nos muros do palácio de Baltasar, rei dos caldeus, escreveu a mais enigmática da anunciação: Mene mene tekel u-parsin, cuja tradução fatalista devemos a Daniel, o profeta.

E nas trevas da Torre de Londres ou na sempiternamente ensolarada cara ocidental do Muro de Berlim essa mesma mão continuou sua longa crônica de nostalgias e iras. E impertérrita continua escrevendo, riscando, pintando, arranhando em todas as superfícies possíveis e impossíveis. Essa mão não encontrará paz enquanto existir uma razão que a inquiete. Independentemente de formas e conteúdos e apesar de todo o poder do estado, os grafites gozam de uma obstinada presença que os fazem igualar à eternidade.

Os grafites são anárquicos por natureza. Seus autores permanecem, por princípio, no anonimato. Contrário aos esforços policiais e apesar dos chamados morais de políticos imaculados, o grafite, como filho do urbano, só terminará com o fim da cidade. Nem um minuto a mais ou a menos. Grafite e cidade estão unidos indissoluvelmente por toda a vida e até que a morte os separe. Aceito este fato, vale a pena se perguntar se não seria mais razoável tomar e compreender os grafites como um signo de seu tempo, antes que se entregar ao sísifo trabalho de querer erradicá-los.

O que distingue o grafite latino-americano de seus distantes congêneres em outras latitudes?

A América Latina se inclina manifestamente pela variante do grafite escrito. De realização mais barata que o de intenção plástica dos países ricos. Depois de longas ditaduras militares e de reformas neoliberais não menos cruéis nas últimas duas décadas do passado século XX, cresceu e se estendeu ao longo dos muros latino-americanos um denso texto silvestre, de abundância e variedade nunca vistas antes. Ainda são visíveis neles vestígios da legendária primavera parisiense de 68. Porém, ao contrário desta, o caráter geral do atual grafite latino-americano está consumido por uma ironia niilista e uma iconoclastia radical.

Na América Latina não foi somente a direita tradicional ou renovada que se alucinou com a pílula ectasy do ultra-neoliberalismo. Também são numerosos os ex-devoradores de capitalistas, que hoje o adoram como uma panacéia prodigiosa contra todos os males. Sou marxista, mas da ala neoliberal: é o comentário que se lê na rua sobre esta metamorfose de Saulo a Paulo. Ou: Pobre país! Até os comunistas são de direita!

Políticos honrados são elementos asociais, informa o muro. Certamente tal informação é válida não apenas na América Latina.


O grafite marca, indefectivelmente, cada processo eleitoreiro, cada decisão governamental, cada debate parlamentário na exposição pública de sua palavra. Deste modo, nos muros latino-americanos têm lugar uma catarse muito particular, que ao menos serve para uma transitória desintoxicação das almas de autores e leitores, tão envenenadas pelas desilusões crônicas das democracias tortas.

O grafite latino-americano é a rebelião dos desdentados. Dos que não mordem, mas que se esforçam em ladrar um pouco. Já não transporta nenhum chamado para tomar o céu de assalto, como naqueles primeiros tempos em que as utopias ainda podiam caminhar. O que resta daquele tempo é uma descascada pátina de nostalgia. Por isso é que ainda se pode ler de vez em quando: Atenção, último chamado! Proletários de todos os países, uni-vos! Ou ainda: Che vive! Como adrenalina em nós!

Porém, isso não é tão certo. Também o comandante inesquecível vegeta agora sem rumo em camisetas descoloridas e os proletários têm hoje preocupações mais urgentes que a de lutar.

Apesar de tudo o muro insiste: Não mate seus ideais! Eles são uma espécie em extinção!

Bem sabem os inimigos do grafite que a luta contra eles não se pode vencer. As bofetadas do grafite alcançam também outros cúmplices do sistema e os acusa de subserviência. Imprensa, rádio e televisão.

Jornalista, tire a proteção da sua caneta, escreva a verdade!, exige o muro. E agrega: Os fatos não se podem mudar, mas pode-se interpretá-los de forma equivocada.

exige o muro. E agrega
Os moralistas municipais afirmam que o muro é o papel do exluídos. É possível que tal rudeza não peque de originalidade, mas em um ponto têm razão: em todo muro se pode escrever. O que se escreve é o que enfurece os sumistas das cidades latino-americanas.

Os namorados, por sua vez, fazem do muro o que sempre foi desde seus princípios: poderoso trompete do amor feliz ou desgraçado. Pois o mundo inteiro deve saber: Teu abraço, uma teia cheia de luz ou Vou chorar, vou ladrar, mas nunca, nunca mais voltarei a falar contigo. E ele sussurra: Espera por mim, nua entre os escorpiões. E ela responde: Ali estarei, com teu veneno em meu sangue.

Talvez, algum dia, quando (não só na América Latina) o grafite se transforme em poesia, será muito mais perigoso do que hoje podemos imaginar. Pode ocorrer, então, que um dia, um exército de sonhadores se decida a responder a pergunta Por que não damos um chute nesta enorme bolha cinza, com a ousadia da prática.

Omar Saavedra Santis

Escritor portenho, nascido em Valparaíso, cuja prolífera obra foi traduzida a diversos idiomas. Reside em Berlim desde 1974.


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