O fato inédito do pedido de desculpas público e oficial feito pelo ministro da Defesa e pelo comandante do Exército, devido à ação criminosa de um grupo de onze soldados (incluindo um tenente e três sargentos) corresponde à gravidade do crime cometido e aponta para uma atitude militar que contrasta com o espírito de corpo tradicional das Forças Armadas.
O crime foi ignominioso. Alegando desacato à autoridade (um pretexto tradicional e, digamos, fortemente subjetivo) os soldados prenderam, dia 14, no Morro da Previdência (Rio de Janeiro) os rapazes David Wilson da Silva (24 anos), Wellington Gonzaga Ferreira (19), e Marcos Paulo Campos (17) moradores do local (que é controlado pela facção criminosa Comando Vermelho) e os entregaram para a fação adversária Amigos dos Amigos, que controla a favela da Mineira. Os rapazes foram torturados e mortos; horas depois, seus corpos foram encontrados em um lixão no município fluminense de Duque de Caxias.
A sequência de fatos reflete a forma autoritária como a cidadania ainda é tratada. O tenente Vinícius Ghidetti de Moraes Andrade, comandante dos soldados criminosos, não gostou da reação dos rapazes a uma revista imposta a eles. Alegou desacato e os prendeu. No quartel, seu superior hierárquico discordou, não viu desacato no caso, pediu tolerância e mandou soltar os presos. Mas o tenente desobedeceu, para não ser ''desautorizado'' ante seus subordinados. E decidiu entregar os rapazes - que eram brasileiros de cor negra - aos traficantes.
Este conjunto de ingredientes resultou num crime de condenação unânime e que indignou os brasileiros. O presidente Lula, profundamente indignado, considerou o episódio ''gravíssimio'' e defendeu a reparação para as famílias. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, usou palavras fortes e considerou o crime ''indesculpável'', ''abominável'' e ''desprezível''. E a nota divulgada pelo Comando Militar do Leste garante que o ''Exército repudia, veementemente, qualquer desvio de conduta e qualquer ação fora da legalidade praticada por seus integrantes''.
Esta condenação unânime é um aspecto da questão. Há outra, que é a ocupação do morro da Providência pelo Exétcito para garantir as obras do Projeto Cimento Social, que recupera residências e é promovido pelos ministérios das Cidades e da Defesa. Mas as denúncias de violência contra a população, feitas pelos moradores, se multiplicam. Coro que cresceu com o crime do dia 14: o presidente da OAB no Rio de Janeiro, Wadih Damous, considera a ocupação inconstitucional e quer a saída imediata das tropas. A ex-deputada fedeal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) manifestou-se no mesmo sentido e também quer a saída das tropas.
O debate, tudo indica, vai se aprofundar pois o presidente Lula e o ministro Jobim defendem a permanência das tropas. Por outro lado, em uma reunião com familiares dos rapazes mortos e membros da comunidade, o general Mauro Cesar Cid, comandante da 9ª Brigada de Infantaria, se comprometeu com os moradores a levar ao comando do Exército, em Brasília, o pedido de retirada dos soldados.
Há uma lição a tirar deste episódio tenebroso: é a de que a grave crise social não é questão policial ou militar. O episódio une um vasto conjunto de problemas, entre os quais a necessidade de aprofundar e consolidar a democracia. O povo pobre tem direito ao mesmo tratamento ''republicano'' dado aos brasileiros de renda mais alta, por todas as autoridades, civis ou militares, em todos os níveis. Outra questão é a eliminação da pobreza, caldo de cultura para estratégias de sobrevivência que muitas vezes ultrapassam os limites da lei e são canteiros férteis para facções criminosas. Questões que, é preciso enfatizar, são sociais, e não policiais ou militares.
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