A Lei Ferida


Antônio Machado

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O Exército e o governo que o acionou para patrulhar uma favela no Rio de Janeiro onde se realiza obra de reforma de casas com verbas do PAC foram seriamente atingidos pela barbárie cometida por 11 soldados sob o comando de um tenente, todos presos, contra os três jovens da comunidade detidos e entregues a traficantes de um morro vizinho para serem assassinados. Os rapazes foram torturados. Seus corpos, jogados num lixão. A crueldade foi inominável.

Nada abona a perversidade dos militares, tão criminosos quanto os assassinos dos rapazes. Mas nada justifica criminalizar o Exército pela sanha criminosa de delinqüentes fardados, que os há também em outras instituições do Estado, do Judiciário às polícias em geral.

A brutalidade cometida na favela da Providência, onde se realiza um programa de reforma das casas sob a proteção do Exército, mais que desvio isolado de conduta de alguns soldados, foi outro sinal de putrefação da ação pública quanto mais se aproxima de quem deve servir. E isso independentemente da renda, da cor, da região, mas sempre trágicos quanto mais indefesos os seus alvos.

É a decadência do Estado que se expõe a cada chacina, não importa quem a cometa, bandidos ou polícias. Nestas situações limite, e o ocorrido no Rio foi apenas mais uma, por mais revoltante que seja o crime, o que se constata é a fuga de responsabilidades, ensaios para se encobrir o câncer moral que corrói as instituições.

Ele se manifesta não só quando o poder armado se volta contra o alvo da proteção como animal ensandecido, por que isso equivale a amenizar seus delitos pela suposta irracionalidade do criminoso, mas toda vez que a lei é desprezada por quem seja. Por senador ou juiz corrupto. Por moradores enfurecidos quando incendeiam ônibus para chamar atenção contra alguma iniqüidade. Ou movimentos de sem-terra que invadem, saqueiam e destróem bens privados e públicos.

A ruína da confiança

Justas ou não, tudo isso resulta da inação de governos acuados pela falta de respostas adequadas para problemas reais ou supostos frente às mazelas do aparelho de Estado. E, sobretudo, pela ruína da confiança social no aparato legal, entregue ao Deus-dará nestes pedaços urbanos e rurais esquecidos pelo Estado. Está aí a crise maior, tratada não como problema estrutural e com respeito a quem se assiste, mas com ações que nem sequer disfarçam seus objetivos políticos, como o programa no Morro da Providência, patrocinado por um senador da base governista candidato a prefeito do Rio.

Social sem cobrança

Cobra-se do governante o que lhe é grave, a eficácia da política econômica, e, no entanto, nada se lhe exige das políticas sociais, da administração eficiente, dos resultados do dinheiro arrecadado à sociedade, até mesmo de quem por justiça se obriga a servir, dos compromissos com que se elegeu. Espera-se tudo de Brasília, como se aos governos estaduais e municipais nada fosse também devido. E ao Congresso se olha como algo abstrato, uma galáxia distante.

Favela não é Bagdá

O grande déficit que ameaça a sociedade é de descrença em que o Estado possa atendê-la sem condicionalidades, mas só porque é seu dever, e é mais grave em áreas abandonados, às vezes a minutos da Região Central, como os morros do Rio. O caos social não resulta de fatalidade, e sim da omissão dos governos e da inexistência de prioridades para a aplicação da farta arrecadação de impostos em todos os níveis da federação. O que se começou na Providência é o certo: o Estado presente. Erra-se na forma. É para chegar e ficar.

Mas não com soldados vestidos e armados para lutar em Bagdá, como na infelicitada favela. Na Nicarágua se aplicou plano assemelhado bem-sucedido. Lá quem enxotou a bandidagem das áreas de risco foi a população ao confiar que a política social que lhe chegava seria permanente e sem mediação de políticos e partidos. É isso: entrega e respeito, dois atributos raros na selvagem política nacional.

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