Você é anti-racista só no Brasil?



por Lejeune Mirhan*

Estava dividido sobre qual tema abordar. São tantos os assuntos. Até publicar sobre poesia palestina cheguei a cogitar. Pensei em tratar dos discursos estranhos e alguns até equivocados proferidos pelo candidato democrata nos EUA, Barak Obama. Pensei em comentar o extraordinário livro que li da ex-freira católica Karen Armstrong intitulado “Uma História de Deus”, por sinal, maravilhoso. Mas, o crescimento do racismo em Israel determinou minha decisão sobre o tema de hoje.


Acampamento de refugiados em 1948

Cresce, de forma espantosa, o racismo em Israel.

O título da coluna acima foi inspirado em uma das circulares que recebo de meu amigo e irmão de quase 30 anos, Emir Mourad, combativo e lúcido camarada militante das boas causas e da causa dos árabes e palestinos. Emir, que me abastece semanalmente de farto material sobre o Oriente Médio, usou esse tema para despertar a consciência das pessoas. Houve época, na década de 1970, que ser anti-racista, contra o Apartheid na África do Sul. Parece que hoje ser contra o racismo não esta mais na moda. Ou somos apenas anti-racistas no Brasil?

Diversas entidades e ONGs, mantidas por judeus e que atuam em Israel, vem realizando pesquisas sobre o crescimento do sentimento racista, anti-árabe que vem dominando a cada dia a sociedade israelense. Uma dessas ONGs, chamada de Mossawa (1), defensora dos árabes israelenses (os que moram em territórios de Israel, na parte da partilhada ONU que ficou com os judeus), após realizar extenso trabalho de pesquisa, constatou:

• 75% dos cidadãos judeus israelenses não estariam dispostos a morar em um mesmo prédio com vizinhos árabes;
• 61% desses mesmos judeus nunca convidariam um árabe a visitarem suas casas;
• 69% dos estudantes de ensino fundamental em Israel acham que os árabes “não são inteligentes” e
• 55% dos judeus do país defendem a separação (segregação) nas áreas de lazer entre árabes e judeus.

Isso tudo é estarrecedor! E ocorre nos dias atuais e com ampla cobertura da mídia de todos os tipos. Diversos líderes judeus têm dado uma crescente declaração de racismo explícito. São geralmente pessoas de extrema direita, militantes de partidos fascistas ou quase fascistas. Os mais destacados são eles e suas respectivas posições:

• Avigdor Liberman, líder do Partido Israel Beitenu (Israel nossa Casa). Esse cidadão defende a troca de populações inteiras por territórios. Ele defende a entrega da Cisjordânia aos árabes, mas a retirada completa de mais de um milhão de árabes de terras israelenses. Um verdadeiro absurdo! É o que chamamos de desterro completo!
• Yehiel Hazan, do Partido Likud. Esse deputado de extrema direita chegou a chamar os árabes de “vermes”!
• Zeev Boim, ministro da Habitação e membro do Partido Kadima, do primeiro Ministro Ehud Olmert. Ele afirma que o “terrorismo” islâmico teria raízes genéticas.
• Eli Eitam, do partido de direita Ihud Leumi. Defende a expulsão completa de todos os palestinos dos territórios israelenses, sob o argumento de que são “traidores”. Defende a exclusão de todos os árabes de todas as instituições de Israel.

A constatação generalizada não só dessa ONG respeitada em Israel, mas de vários setores, inclusive da imprensa, é que o crescimento da legitimação do racismo acaba rendendo uma maior aceitação das idéias favoráveis ao racismo e à discriminação e segregação. Pessoas defendem quase que abertamente, nas ruas, a expulsão de árabes de terras israelenses (que na verdade eram palestinas antes da decisão da ONU). Algumas leis de Israel que condenam o racismo viram letra morta nessa sociedade racista que virou Israel.

O maior absurdo nesse processo pode ser constatado pela coincidência de fatores. No mesmo dia em março que essa ONG publicou seu relatório denunciando o crescimento do racismo na sociedade israelense, o rabino Dov Lior, uma espécie de mentor espiritual dos assentamentos de Hebron e de Kiriat Arba, editou um decreto que proíbe todos os seus seguidores de alugarem casas ou qualquer propriedade para árabes em geral ou, o que é pior, de empregarem trabalhadores árabes. Ainda que condenado expressamente por defensores dos direitos humanos, advogados e mesmo alguns outros rabinos, isso é uma clara demonstração do clima cada vez pior de intolerância vivido na sociedade israelense hoje.

Outra pesquisa chama atenção

Um dos mais respeitados e maiores jornais de Israel é o Yediot Ahronot. Um trabalho que ficou desconhecido na grande imprensa, veio à tona nesta semana (2), em correios eletrônicos que diversas redes árabes circularam pela Internet no Brasil. Trata-se de um estudo que visa descobrir o grau de racismo da sociedade israelense.

Em Sociologia muitas vezes usa-se esse tipo de pesquisa quantitativa, mas também qualitativa, estudos de caso, medições de reações sobre determinadas situações dadas. Em manuais que estudei na Universidade, lembro-me de uma pesquisa que indagava aos pesquisados sobre racismo, relacionados com os negros. Era uma pesquisa feita exclusivamente com brancos. Indagava-se se estes teriam amigos negros, depois se morariam com negros como vizinhos e o limite era se deixariam suas filhas se casarem com negros. Testes de sociometria, parecidos com esse medem distância social, em uma classe de alunos por exemplo, quando se indaga aos alunos para marcarem quem são seus melhores amigos e colegas, com quem eles mais gostam de se relacionar ou com quem gostariam de se relacionar que ainda não o fazem. Isso mede distância e pode ser feitos inclusive gráficos que mostram os mais populares e os mais rejeitados.

Não tive acesso á metodologia da pesquisa do Yediot, mas de qualquer forma os procedimentos foram deveras interessante. Foram selecionados seis pessoas, todas israelenses, mas de origens distintas. Ao todo, seis cidadãos israelenses toparem participar da pesquisa. Um deles, claro, era o árabe israelense (aquele palestino que conseguiu não ser expulso de suas terras ou que sempre morou na parte que a ONU destinou para o Estado de Israel); um judeu fundamentalista (ortodoxo), um judeu etíope (chamados de falachas), um judeu russo, um judeu oriental (leste europeu e Ásia) e um asquenazi (judeu ocidental, da Europa ocidental).

Os pesquisadores colocaram essas pessoas para procurarem empregos em restaurantes, em várias cidades de Israel, em escolas e também pediram para elas tentarem matricular seus filhos em creches. Os resultados, esperados claro, foram surpreendentes. O judeu ocidental (asquenazi), foi o que recebeu maior ofertas de empregos, respostas positivas e não enfrentou nenhum sintoma de discriminação. Em segundo lugar ficou o judeu marroquino (oriental), em terceiro ficou o judeu fundamentalista, a quarta posição ficou com o russo, a quinta com o etíope e por último, claro, o árabe israelense, de nome Said Hassanein.

O incrível de tudo isso, segundo os dados do relatório final, é que o árabe Said era o que tinha as melhores qualificações para trabalhar em qualquer restaurante, tinha apresentações, experiência, que nenhum outro tinha!. O querido de todos, o judeu ocidental, asquenazi, não tinha nenhuma qualificação, mas dizia assim “estou disposto a aprender” e ganhou a ampla simpatia dos futuros empregadores. O árabe não só foi rejeitado por todos, mas sofreu discriminação e maus tratos.

No caso mais específico de matrícula nas creches, Said nunca conseguiria uma vaga para seus filhos. Recebia respostas do tipo “sim, temos vagas, mas nunca matricularíamos um filho de árabe em nossa creche”! Nenhum outro judeu, claro, recebeu qualquer contratempo para tentar matricular qualquer filho seu em creches. E isso se repetiu em diversas cidades de portes diferentes.

O racismo israelense é muito antigo. Israel é o único país do mundo que as careiras de identidade de seus habitantes possuem um campo onde as pessoas declaram as suas religiões. Eles se consideram um Estado judeu e, portanto, pessoas que professam o cristianismo e o islamismo acabam sendo “naturalmente” discriminadas. A Organização Internacional do Trabalho – OIT tem diversos estudos que mostram que trabalhadores palestinos e árabes em geral ganham até metade do que ganham trabalhadores judeus. E o que é pior realizam funções na maior parte das vezes mais degradantes.

A base e a fundamentação do racismo israelense

Estas coisas não ocorrem por acaso. Elas vêm de tempos, se acumulam, vão criando uma cultura na sociedade israelense. Crianças desde a mais tenra idade são criadas para odiar árabes e palestinos, já nas suas casas, de seus pais e ampliam isso nas escolas. Mas, há uma fundamentação jurídica para isso, amparo legal para todos esses procedimentos. Listamos aqui os principais deles:

• Lei do Retorno – É de 1950 e concede cidadania automaticamente a todos os judeus de qualquer país do mundo que se dispuser a mudar para Israel.
• Lei da Nacionalidade – É de 1952, mas foi “aprimorada” em 1971, que concede cidadania a todos os judeus antes da imigração;
• Lei sobre Casamentos – É de 1953, que institui a proibição de casamentos entre árabes e judeus;
• Lei da Defesa – designa poderes aos governantes militares judeus para controlar e até mesmo escravizar cidadãos que não sejam judeus sob a alegação de necessidades, retirando dessas pessoas todos os seus direitos fundamentais;
• Lei da Segurança – É a que cria as regiões e zonas fechadas de elevado controle por parte de Israel, contra os palestinos. Nessas localidades pode-se decretar a prisão, enviar para exílio, sem direito a nenhum julgamento, a qualquer palestino “suspeito”. Ela impõe toques de recolher nessas localidades;
• Lei de Emergência – Uma das piores e mais drásticas leis que assegura ao Estado de Israel o “direito” de até a demolir casas de palestinos sob a mais simples suspeitas, expulsando moradores de determinadas regiões. As casas são demolidas com os tratores poderosos de fabricação americana pela Caterpillar. Em uma dessas que a americana Rachel Curie foi morta quando defendia uma dessas casas e foi esmagada por um desses chamados buldozzers.

Não aceitamos essas práticas, condenamos com a maior veemência tudo isso, mas infelizmente, a maioria das pessoas parecem ser anti-racistas apenas em seus próprios países. Até quando a humanidade vai aceitar essa barbaridade praticada contra palestinos e árabes em geral? Até quando fecharemos nossos olhos a essas injustiças? Até quando a comunidade internacional vai ficar de olhos fechados para isso? E o Conselho de Segurança das Nações Unidas, não vai condenar isso?

Israel hoje revive o auge do Apartheid na África do Sul, que era unanimemente condenado. Que não se lembra de grande empresas transnacionais fechando suas montadoras, suas fábricas na Cidade do Cabo e tantas outras localidades sob o discurso de condenação do racismo? Porque não se toma hoje uma atitude semelhante contra Israel?

Infelizmente, eu sei a resposta. É a bendita correlação de forças adversas que vivemos no mundo hoje. Os que lutam contra tudo isso ainda não são fortes o suficiente para fazer valer a sua infinita indignação. Os que lutam contra tudo isso ainda não conseguiram vencer a opinião pública hoje, contaminada, infelizmente, por outros tipos de sentimentos, como o individualismo, a competição, as vaidades pessoais, a busca do lucro fácil, o egoísmo, o consumismo fútil.

Pode ser que ainda dure um tempo, mas temos a certeza de que isso vai mudar e já percebemos mesmo a mudança. Quiçá elas ocorram mais breve do que imaginamos.

(1) Publicado no jornal Folha On Line do dia 20 de março de 2008, em despacho das 10h47, assinado por Guila Flint, correspondente da BBC em Tel Aviv.

(2) Agradeço a Jadallah Safa o envio dos dados da pesquisa do jornal israelense e seu artigo intitulado “Israel, um Estado Racista”.




*Lejeune Mirhan, Presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Escritor, Arabista e Professor Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa, Membro da International Sociological

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