Desejo de ser gente
O menino, filho da empregada doméstica, era tão inteligente que sua madrinha – e patroa de sua mãe – colocou-o na mesma escola primária particular em que seus filhos estudavam. A mãe, Maria Fernandes, portuguesa que emigrara para São Paulo fugindo da pobreza e da falta de oportunidades, lhe dera o nome de Florestan, mas a madrinha não achava que aquilo fosse nome de pobre – tratava-o por Vicente. Aos 10 anos, porém, Vicente – ou melhor, Florestan – teve de largar a escola para trabalhar em tempo integral e ajudar a mãe. Mesmo assim, diria ele anos mais tarde, aqueles poucos anos no ensino primário foram cruciais para que se formassem os ideais civilizatórios de vida e de inconformismo face à condição subalterna que caracterizariam a personalidade de Florestan Fernandes, um dos maiores intelectuais que o Brasil já produziu.
Enquanto trabalhava nas mais diversas e mal-remuneradas ocupações, Florestan continuou estudando por si próprio, autodidata, procurando no mundo das letras um refúgio à dureza de sua condição. Mas não teria continuado sua trajetória de superação pessoal não fosse, mais uma vez, a proteção dos “de cima”, no caso, de professores que freqüentavam o bar em que o jovem trabalhava como garçom e impressionava a todos discorrendo sobre história do Brasil – eles lhe arranjaram um emprego de horário flexível, que lhe dava mais tempo para estudar, e conseguiram descontos nas mensalidades do curso de madureza no qual ele viria a concluir o segundo grau, e, a partir daí, ingressar no recém-formado curso de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP), onde enfrentaria aulas ministradas em francês pelos professores estrangeiros que vieram instituir o curso.
Ou seja, na formação de Florestan estão mesclados, como afirma a professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, “traços das tradicionais relações pessoais de proteção a elementos da ordem liberal, como a iniciativa individual e a cultura letrada, expressando as complexas combinações entre o moderno e o tradicional”. É justamente a análise dessa combinação complexa, peculiar, que se estabelece no Brasil entre tradição e modernidade, que compõe o pano de fundo de A integração do negro na sociedade de classes, obra fundamental de Florestan Fernandes. O livro nasceu de uma ampla pesquisa empírica sobre as relações raciais na cidade de São Paulo que a Unesco encomendou a Florestan e seu antigo mestre, Roger Bastide. A pesquisa fazia parte de um grande projeto da instituição que colocava o Brasil como um laboratório de estudo das relações raciais, partindo da suposição de que nossa sociedade fosse “livre” do racismo. Os dados, coletados entre 1949 e 1951, formaram a base sobre a qual Florestan escreveria seu livro.
Embora o tema seja o das relações raciais, a análise de Florestan converte-se, “em um estudo de como o Povo emerge na história”. O dado fundamental dessa história é o processo de modernização, de superação de uma ordem social tradicional e de formação da sociedade de classes como uma “ordem social competitiva”. Nesse processo, a condição do negro e do mulato poderia ser generalizada para a de todo o povo brasileiro pelo fato de que eles tiveram “o pior ponto de partida”, as piores condições psicossociais de adaptação à dinâmica da modernização.
Vida à margemA campanha abolicionista, apesar de sua faceta humanitária e de contar com expressiva participação dos próprios negros, esgotou-se em si mesma, com o fim oficial do cativeiro: “a cena histórica era insensível a reivindicações que não terminavam com a ‘liberdade da pessoa humana’, mas iam além dela, exigindo-a como mera condição preliminar”, afirma Florestan. Assim, logo após a abolição, o negro viu-se largado à própria sorte, despreparado, sem recursos de educação formal, sem acesso à terra a não ser na condição de parceiro, meeiro, agregado, ou numa parca e incerta agricultura de posse e subsistência, sem condições de competir como força de trabalho com o imigrante – viu-se obrigado a escolher entre a falta de perspectiva no campo ou a migração para cidades como São Paulo. Nestas, lugar privilegiado da modernização, os negros, em sua imensa maioria, viviam à margem, “sem participar de seu dinamismo”. As mulheres ainda encontravam mais oportunidades de ocupação, mas nas posições desvalorizadas de domésticas – cumprindo, não raro, além do papel de trabalhar, o de ter de satisfazer o apetite sexual do patrão e dos filhos – ou de prostitutas. Aos homens, porém, praticamente só lhes restava a opção de se tornarem “vagabundos”, “bêbados”, “desordeiros”, “parasitas”.
A deficiência educacional poderia explicar tanto deslocamento – mas apenas em parte. Os imigrantes, em geral, não apresentavam condições tão melhores que os negros nesse aspecto, mas muitos deles conseguiam conquistar posições sociais abertas na nova sociedade capitalista – tais posições não eram as mais altas, essas se mantiveram nas mãos da elite tradicional, mesmo assim havia espaços de ascensão social, que os negros e mulatos só em raríssimas exceções conseguiam ocupar. A questão fundamental, para Florestan, é que o capitalismo, ou seja, a sociedade de classes, demanda um determinado padrão psicossocial, um “estilo de vida”, uma certa predisposição de espírito, condição básica para que os indivíduos se adaptem a ele e possam agir de maneira a conquistar ganhos e recompensas nessa ordem social competitiva e individualista.
Era justamente isso que faltava aos antigos escravos. Bem ou mal, estavam adaptados à sociedade tradicional, escravocrata, como escravos ou como libertos e agregados que viviam das relações pessoais de favor. Assim, faltava-lhes senso de poupança e impulsos aquisitivos; faltava-lhes disposição em se ocupar com funções que, por lembrarem o passado, eram consideradas degradantes – dificuldade que os imigrantes não tinham, pois percebiam que, no contrato de trabalho, vendiam apenas sua força de trabalho, ao passo que, para os negros, a relação contratual era vista como se alienassem a própria pessoa, como se se vendessem, em parte ou totalmente, ao aceitar e praticar as estipulações do contrato. Enfrentavam o mercado de trabalho como se nele ainda imperasse o tráfico negreiro.
Família desorganizadaMas havia, ainda, outra deficiência fundamental para os negros: seus padrões familiares disruptivos, outra herança trágica da escravidão, quando os senhores faziam de tudo para impedir a formação de famílias escravas, como forma de evitar e minar a solidariedade entre os cativos. Como sociólogo, Florestan sabia da importância da família como instância moral e social primária, que exerce a função de moldar a personalidade do indivíduo especialmente no controle de comportamentos egoísticos. As entrevistas realizadas por Florestan e Bastide demonstravam uma vida familiar desorganizada, com o pai muitas vezes ausente, na qual imperava uma ética de sobrevivência agreste, um código de conduta rudemente egoísta e violento em relação aos mais fracos, à mulher, à criança, que raramente era tratada como tal. Formava-se, através desse padrão familiar, um tipo de personalidade que obedecia e respeitava mais por medo que por consideração, que via a esperteza e a violência, e não a solidariedade, como os meios básicos de sobrevivência.
A anomia familiar juntava-se à pobreza, que se condicionavam e alimentavam mutuamente. O resultado era o que Florestan chamava de “demora cultural”: o desenraizamento, o deslocamento – mais até que cultural, existencial mesmo – dos negros na sociedade de classes. E a percepção desse deslocamento era o principal dado de suas vidas, o que mais desejavam era superá-lo, era participar das oportunidades da sociedade, de suas promessas. Nas entrevistas, a expressão dessa autopercepção e desse desejo: o que mais queriam? “Ser gente”. Em cidades como São Paulo, viam outros conseguindo, enquanto eles ficavam para trás. Julgavam-se pessoalmente responsáveis por esse fracasso. Os casos de comportamentos desviantes configuravam, então, para Florestan, uma espécie de desespero mudo, de protesto inarticulado, uma “escolha”, mesmo que irracional em seu conteúdo, por um modo desesperado de se afirmar a individualidade, de ser gente – para não fazer papel de “otário”, para não se submeter a “serviços de preto”, perigosos e humilhantes, os destinos de ladrão, vagabundo, bêbado, prostituta.
A partir de situação tão precária, a raça negra jamais representou, para os brancos, qualquer ameaça à sua posição social, nunca houve razões para que estes se sentissem ansiosos ou inquietos com a possibilidade de os negros competirem realmente com eles. Essa, garante Florestan, é a razão fundamental para o fato de não haver se desenvolvido, no Brasil, um racismo aberto, consciente, organizado, explícito. Mas isso, continua, está longe de configurar uma “democracia racial”, como o próprio projeto da Unesco supunha. Na verdade, preconceito existia, e muito, mas não propriamente – ou principalmente – contra a cor da pele. A pele escura era uma dificuldade adicional, o que contava mesmo era a aversão a um tipo de personalidade, um “tipo de gente” – deslocada, preguiçosa, imprevisível, mal-educada, perigosa – do qual os negros eram boa parte, mas que não se restringia a eles. Um tipo de gente cuja existência expressava a persistência, na sociedade moderna, de padrões sociais tradicionais, atrasados, e era marginalizada por isso.
Modernidade e atrasoAs sociedades não se modernizam de forma abrupta, resquícios de elementos tradicionais prosseguem por bom tempo. Mas, para Florestan, no Brasil, o moderno não vai substituindo gradativamente o tradicional – ambos convivem de mãos dadas, ambos são constitutivos um do outro. Assim, Florestan não vê a sociedade moderna, de classes, no Brasil, cumprindo sua potencialidade de absorver e neutralizar diferenças raciais próprias de sociedades tradicionais, nem mesmo em São Paulo, seu centro urbano-industrial mais desenvolvido. Na verdade, essa simbiose modernidade/atraso é altamente proveitosa para a camada dominante, que aprendeu a tirar vantagens tanto do atrasado quanto do moderno. E a marginalidade, não só dos negros, mas dos pobres em geral, tem tudo a ver com isso.
Sobre essa marginalização, Florestan escreveu: “antes de estudar esse processo na pesquisa sobre o negro, vivi-o em todos os matizes e magnitudes”. Daí sua identificação com o drama do negro e do povo brasileiro, da qual não nasceu uma complacência paternalista, uma indulgência fácil, mas uma compreensão profunda – das fraquezas, mas também de qualidades nascidas em meio a tanta adversidade. Ao lembrar, em sua infância e adolescência, a reação negativa das pessoas de seu meio à insistência com que se apegava aos estudos (a começar da mãe, que temia que se o filho estudasse passaria a ter vergonha dela), Florestan aponta suas limitações, sua rusticidade, sua incompreensão trágica e profunda dos próprios interesses e necessidades. Mesmo assim, completa, foi com algumas daquelas pessoas que ele aprendeu “que a medida do homem não é dada pela ocupação, pela riqueza e pelo saber, mas pelo caráter, uma palavra que significava, para eles, pura e simplesmente, sofrer as humilhações da vida sem degradar-se”.
Rubens Goyatá Campante é cientista político.
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