* André Freire
O jornalista e o jornalismo entraram no ar. A personagem de um jornalista protagoniza uma novela do horário nobre da TV. Conquista, beija, achincalha suas fontes, grita contra o político, no comício que está cobrindo, faz o diabo, é bonito e “do bem”, em A Favorita. O “mocinho” encarna a posição denuncista e pretensamente justiceira da imprensa brasileira. Trocando os sinais, a faz parecer positiva, escondendo o que ela realmente é, enquanto pretende revelá-la pelo que ela não é. Mas vamos digredir para aspecto da relação da personagem com o exercício da profissão.
A novela, como criação, é uma construção com hora, local, data e muitas intenções, para existir. Uma construção em releitura de uma construção maior que é a vida, reinventando-a. Mas como convém ao “establishement”, a quem a TV serve, servindo-se, também, essa construção/releitura, que há anos freqüenta os lares brasileiros, via de regra não coincide com a construção verdadeira da realidade. Desta vez, estão na mira os jornalistas e o jornalismo, mostrados do jeito que interessa às empresas jornalísticas e a ficção permite.
Como para o grande público, as novelas reproduzem a verdade, o essencial, milhões de pessoas são induzidas a ter uma imagem falsa do jornalista e da sua atividade, ambas descaracterizadas e banalizadas.
Comento somente até o sexto capítulo do folhetim das oito, da Globo, mas o que se mostrou até então já é assustador para quem conhece a profissão de jornalista, observa seus códigos deontológicos, convive com a estrutura de mando das redações e para quem suporta a exploração do seu trabalho pelo patronato truculento dos jornais, revistas e das TVs.
Essa novela é mais uma artimanha que distorce o caráter da profissão de jornalista para a opinião pública, mostrando nada de verdadeiro e escondendo muito dela, sobretudo, os aspectos perversos da sua precarização promovida pelos patrões, maquiada pela glamurização e pelo comportamento profissional impróprio e olímpico da personagem.
A profissão é popularizada por um herói imbecil, desligado da realidade dos jornalistas, sem escrúpulos, que só se justifica perante o público, na razão maniqueísta das novelas, por se contrapor aos vilões da trama, gerando empatia. Sua independência é inverossímil, sua rebeldia é de nenhuma causa, seus diálogos com a bela colega de redação são infantilizados, seus contatos com suas fontes são extravagantes e invasivos, a atividade profissional é uma aventura. Tudo o que é preciso para se praticar o não jornalismo, apresentado, sem restrições, como exemplos de prática e coragem profissional.
Mas o herói impertinente, irritadiço e quixotesco, é na verdade um disfarçado bajulador alienado, que usa o próprio automóvel para fazer reportagens – que pelo menos receba por isso - dirige o veículo roubando o posto de trabalho dos motoristas profissionais e fotografa enquanto entrevista, ocupando o lugar do repórter-fotográfico, ou do repórter de texto, não se sabe, na mais cínica demonstração da prática de desvio e duplicidade de função que os patrões impõem e os sindicatos e federação combatem.
Apresenta precária concepção de jornalista na pele de uma personagem, meio James Bond - meio Zorro, que, sem qualquer óbice, cobre e escreve o que quer para a editoria que quer. A ficção quer vender ao público uma liberdade que não existe na vida real do jornalista de hoje, ainda mais quando essa liberdade contraria interesses. Suas matérias, certamente, não seriam publicadas em nenhum impresso brasileiro financiado e submetido à publicidade das empresas e à boa relação com os ricos.
Se a pauta e o script da personagem continuarem como chegou ao sexto capítulo, será preciso que a Fenaj se manifeste em nome dos jornalistas, mas para alertar os noveleiros do engodo que, mais uma vez, a ficção prega aos telespectadores.
Entretanto, uma provocação do tamanho do Ibope do horário nobre deve nos animar para reiniciarmos perante o grande público a discussão sobre a importância do Conselho Federal dos Jornalistas, tão necessário para nos defender quando brincarem com a nossa profissão, como brincam agora. Novela não é só novela!
* Jornalista, diretor regional do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo no Vale do Paraíba, Litoral Norte e Mantiqueira
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