Um não à descrença

Precisamos reavivar os valores carcomidos
Fátima Garcia Passos, Especialista em ciência das religiões, mestre em filosofia
Eu não acredito, como o antropólogo Lèvi-Strauss, que o mundo que começou com o homem acabará sem ele, pois este, as instituições e os costumes seriam uma floração passageira. Acredito, sim, que esse homem que hoje existe e que se perdeu no mundo das aparências construídas para maquiavelicamente dominar, esse sim, desaparecerá, e isso porque essas máscaras que surgiram para dissimular a belicosidade das guerras fratricidas da antigüidade e a ferocidade íntima de cada um se esvaecerão como brumas, colocando a público as mazelas dos sepulcros caiados de que fala o evangelho. Acredito mesmo que, pela própria lei de evolução, a palavra dita terá um significado só; dirá o que diz e não será usada de forma irregular, como a maquiar verdades veladas e escusas, essas que maculam as relações públicas e privadas.

Assistindo há meses ao programa da TVE Mesa de debates, vi a ex-primeira-dama Vanessa Loçasso falar de seu marido: “Porque o prefeito Alberto Bejani é muito transparente nos seus atos e muito correto no que faz”. Ao fazê-lo, ela assumiu gestos com penetrantes e repetiu a frase três vezes. Mas por que o fez? O agir correto e a dignidade de um ser precisa ser alardeada? E por que senti que uma inverdade estava sendo dita? Quantas e quantas vezes nos negamos a ouvir a voz da intuição. De fato é incômodo e cansativo desconfiar a todo instante do que se vê e do que se ouve. É mais fácil acreditar e relaxar. Mas até quando acreditaremos, por comodismo ou conveniência? Até quando seremos omissos enquanto cidadãos? Por quanto tempo imerso em nossas vidas delegaremos os outros o ato de questionar?

O conhecimento histórico e social alarga a compreensão do homem enquanto ser que constrói seu tempo. E a reflexão histórico-antropológica dos fatos sociais nos ajuda a compreender o que podemos ser e fazer em benefício de um mundo melhor. Mas, para garantir a nossa sobrevivência ou até a nossa imponência, nos desdobramos nos afazeres e negócios do cotidiano, esquecendo o social. Todavia, vivemos na polis e dela tiramos nosso sustento, portanto, indagar e questionar é função de todos.

Ao politizarmo-nos, escaneamos a veracidade do que se é falado, ajudamos no desvelamento da realidade e verificamos a autenticidade dos fatos. No período clássico grego, o homem se percebia, sobretudo, como membros da cidade na qual vivia. O seu agir era modelado pelas leis (nomos) e a virtude consistia em ser um bom cidadão. A política e a ética eram concebidas como intimamente vinculadas, e o governante um ser engajado com o bem comum. Contudo, no mundo hodierno em que vivemos, a descrença se fez entre nós; ouve uma degeneração do pacto social e indiferente a tudo cada um pensa somente em si. Todavia, há que se mudar permutar a descrença pela esperança, apostar nos novos tempos que surgem, reavivar os valores carcomidos, apostar num mundo melhor em que cada um, embora cuidando do que é seu, demande algum para cuidar do que é de todos.

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