Duas décadas depois

Da Constituição de 88, o saldo, especialmente na ordem social, é positivo, descabendo a idéia de nova Constituinte
Jarbas Passarinho, Ex-governador, ex-ministro, ex-senador
Em 5 de outubro de 1988, a Mesa do Congresso, presidida pelo deputado Ulysses Guimarães (PMDB), promulgou nossa Constituição. Faz 20 anos e está repleta de emendas. O presidente José Sarney, vice de Tancredo Neves, que morreu antes de assumir a presidência, recebeu o governo com uma inflação de 220% ao ano. Como presidente da Arena e, posteriormente, do PDS, braços políticos dos governos dos generais, vivera o período que a mídia estrangeira chamava de milagre brasileiro uma economia que cresceu, de 1967 a 1973, em média, a 10% do Produto Interno Bruto (PIB), ao ano. Cabiam-lhe duas missões fundamentais: completar a transição do que restava do autoritarismo depois da emenda constitucional de outubro de 1977, que acabou com todas as medidas de exceção a partir da revogação do AI-5, e domar a inflação renascida desde 31 de março de 1964. Para dar cumprimento à transição, convocou Assembléia Nacional Constituinte, o que era essencial dada a modificação institucional, causada pelo fim do ciclo militar, marcado pelas turbulências ideológicas e a luta armada contra as guerrilhas comunistas, que duraram quase 10 anos. Na guerra à inflação, seus esforços por domá-la tiveram resultado antagônico. Terminou o governo com 1.700% ao ano. A princípio, o Plano Cruzado parecia garantir o sucesso da missão. Chegou a empolgar o povo com os “fiscais do Sarney”, especialmente nos mercados de comestíveis. Foi o namoro com a ilusão milenar do Código de Hamurabi. Os preços foram respeitados, mas os produtos desapareceram das prateleiras Conhecemos a crise do abastecimento. A correção possível da realidade esbarrou na necessidade de blindar a ruína para assegurar a vitória nas eleição de 1989. Só então veio o Plano Cruzado II. Os adversários apelidaram a manobra de “estelionato eleitoral”.

Se a missão de dominar a inflação não foi bem-sucedida, a de consolidar a transição o foi. A Constituinte começou seu trabalho com as comissões temáticas, cujos relatórios confluíam para a comissão de sistematização. Ultimado seu trabalho, estava pronto o projeto que seria finalmente apreciado pelo plenário. Ora o “estelionato eleitoral” resultara na eleição de mais de 50% do PMDB, que, aliados à Frente Liberal, somavam cerca de 75% de todos os constituintes. O relator-geral, deputado Bernardo Cabral, conquistara relatoria num concurso de oratória julgado pelo plenário. Ele foi o vencedor. No decorrer dos trabalhos, o PMDB ensaiou mudar o mandato do presidente Sarney para quatro anos. Ele reagiu, mas concordou com o prazo de cinco anos. O sistema de governo, se passasse para parlamentarista, induzia pensar-se que deixaria Sarney, tão logo fosse promulgada a Constituição, figura menor que o primeiro-ministro, chefe do governo. A atuação dele, junto ao plenário, reforçada pelos parlamentares presidencialistas, gerou uma emenda, já no plenário, que mudava o texto para presidencialista, numa das sessões de presença maciça dos constituintes. O resultado é que temos hoje um sistema inédito, de presidencialismo com medidas provisórias, que transformam o presidente em maior legislador do que o Legislativo.

Não certamente por isso, mas por achar que o texto escrito pelos constituintes ficava longe do desejado, o PT, ou seja, Lula com a força do “centralismo democrático”, recusou autografar a Constituição, por considerar que estava longe de atender às reivindicações trabalhistas de esquerda. Não teve a percepção de que estávamos em 1988, que o muro de Berlim cairia um ano depois e o colapso da União em 1991. Só à última hora, autografou a Constituição. O contraste dessa decisão está em que, cumprindo norma constitucional, dar-se-ia a revisão em 1993 e o PT, que relutara autografar a Constituição, impediu que ela fosse revista, agora com receio contrário ao anterior, pois, como diria Fernando Henrique Cardoso, o mundo mudara. Ele, quando constituinte, tinha sido estatizante de acordo com as diretrizes socialistas, mas agora foi o autor das privatizações tão combatidas pelo PT até hoje. Graças ao seu empenho, a Petrobras, que era considerada intocável como executora do monopólio da pesquisa e lavra do petróleo, perdeu essa condição, ficando o monopólio para responsabilidade do Estado. Com isso, as empresas estrangeiras de pesquisa, simplesmente odiadas pela esquerda nacionalista exaltada, passaram a trabalhar associadas à Petrobras nas áreas por ela indicadas, ou exclusivamente onde certos segmentos não interessavam à estatal. Note-se que na descoberta do pré-sal empresas estrangeiras estão associadas à brasileira, mas não haverá leilões na expansão da pesquisa das reservas.

Discursando em nome do PDS, no encaminhamento da votação da Constituição, fiz o elogio da convivência pacífica, e até cordial, de nós, remanescentes do autoritarismo, com os que nos foram contrários, até de armas nas mãos. Foi a ilusão de que se tratava do sinal da reconciliação da família brasileira, algo que, hoje, 20 anos depois, ainda não se deu. O ideal teria sido a revisão, para atualizar a Constituição, mas o relator chegou a ser sitiado em seu gabinete. ou enfrentar os “corredores poloneses”, de atuação fascista, mas o saldo, especialmente na ordem social, é positivo, descabendo a idéia de nova Constituinte, com os objetivos ocultos dos que a defendem pensando imitar o presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

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