A sociedade precisa ser alertada

ANTONIO CLAUDIO MARIZ DE OLIVEIRA


Todos desejamos impedir a progressão da corrupção no país. Porém, combatê-la não é um fim que possa justificar a utilização de meios ilegais

NÃO É preciso apontar os graves malefícios causados pela corrupção ao país. Despiciendo afirmar que todos nós desejamos impedir sua progressão e ver punidos os responsáveis. Tais objetivos não constituem privilégio de uns poucos, que se sentem detentores exclusivos das virtudes universais e enxergam os demais como criminosos -pelo menos, potenciais. No entanto, combatê-la não é um fim que possa justificar a utilização de meios ilegais. Há outros valores que devem ser preservados, ligados à dignidade humana e à própria democracia. Ultrapassar os limites da legalidade é tão grave para a cidadania quanto a impunidade.
Os excessos que temos visto na luta contra o crime não são percebidos pela sociedade, que não conhece as leis nem os princípios constitucionais e crê no que é divulgado pela mídia. Em razão da teatralização das operações policiais, a sociedade, à vista do homem preso e algemado, passa a considerá-lo culpado, embora ele não tenha ainda sido condenado, denunciado, processado nem sequer ouvido.
O cidadão comum, ademais, pensa ser absolutamente necessário o uso de algemas e o emprego do aparato bélico utilizado nas prisões dos suspeitos. Na realidade, esse aparato é simbólico, pois quer passar a idéia da eficiência policial e da pseudoculpabilidade do suspeito. No entanto, este é detido em sua residência, logo ao amanhecer, na presença de sua família, sem oferecer nenhum risco ao êxito das operações e à incolumidade física dos policiais.
O povo também imagina estar provada a culpa do suspeito em face da decretação da prisão temporária. Em todos as operações, não só os suspeitos são presos, mas todos aqueles -mesmo que indiretamente- ligados à empresa ou ao empresário investigado. Tais prisões atingem desde diretores até funcionários subalternos, passando pelos advogados, sem nenhuma verificação sobre a participação na conduta dita criminosa. Prende-se primeiro para indagar depois. O objetivo das prisões é obter a confissão ou a delação do que se fez ou se sabe, sob a promessa explícita da liberdade. É claro que, em face desse irresistível meio de persuasão -verdadeira tortura moral-, fala-se o que se sabe e o que não se sabe... Uma outra inverdade diz respeito à eficácia das escutas telefônicas como meio exclusivo de investigação. Elas constituem prova precária e insuficiente para justificar prisões e buscas, embora cômoda e confortável para ser produzida. É grande o grau de subjetivismo impregnado na produção dessa prova, pois as escutas são materializadas na forma de resumos, interpretações e comentários enviados para os autos.
A íntegra das interceptações não é remetida para o processo, sendo, pois, uma prova seletiva, de responsabilidade de policiais, que nem sequer são peritos e que, portanto, não assumem compromisso com a fidelidade das transcrições nem com a imparcialidade nas interpretações. O povo precisa saber que existe um sistema penal com direitos e garantias que, se forem desrespeitados em um caso, poderão sê-lo em qualquer outro, atingindo qualquer um.
Assim, de acordo com esse sistema, não se pode considerar alguém culpado antes de ser ele ouvido, antes de ser denunciado pelo Ministério Público, antes de ter exercido plenamente o seu direito de defesa, antes de terem sido produzidas provas, as da acusação e as suas, e antes de uma sentença condenatória definitiva.
Imprescindível que a sociedade saiba que toda prisão anterior ao cumprimento dessas fases, que constituem o chamado devido processo legal, só pode ser decretada com base em fatos que justifiquem sua necessidade, pois possuem caráter excepcional, em respeito ao sagrado direito à liberdade e exatamente para que não se julgue culpado alguém que ainda não foi julgado nem se defendeu.
Essas violações aos direitos individuais precisam ser denunciadas, para que não sejam louvadas por uma sociedade que as ignora e que desconhece os riscos que elas representam.
Esse é o outro lado de uma questão que vem sendo posta de forma parcial e maniqueísta. Os limites entre a questão criminal e os direitos individuais devem ser respeitados. As vozes que se erguem em seu prol precisam ser ouvidas. O que dizem precisa ser sopesado e analisado pelos responsáveis pelo combate ao crime, que também têm compromisso com a dignidade humana e com o Estado democrático de Direito.

ANTONIO CLAUDIO MARIZ DE OLIVEIRA, 63, é advogado criminalista. Foi presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo), além de secretário da Justiça e da Segurança Pública do Estado de São Paulo (governo Quércia).

Nenhum comentário: