Filmar pobre não é pecado

MARCELO COELHO



"Linha de Passe" não é incorreto nem correto: é equilibrado; trata-se de personagens duros

DEPOIS DE "Abril Despedaçado", criei certa preguiça de ver os filmes feitos por Walter Salles Jr. Claro que é um cineasta excelente.
Acho que não andei sozinho, contudo, ao reclamar do excesso de correção política e de intenções esperançosas num filme como "Central do Brasil". E também de uma estetização meio enevoada e fácil em "Abril Despedaçado".
Assim, não tive muita pressa para ver "Linha de Passe", o mais recente filme de Walter Salles, em colaboração com Daniela Thomas. O público, por sua vez, parece dar mostras de cansaço diante de tanta gente pobre no cinema brasileiro.
Ainda mais quando um dos pobres é motoboy (operários e camponeses já desapareceram do nosso horizonte), e quando se abordam os temas onipresentes do futebol e da fé evangélica. Com um ou outro toque de narcotráfico, para não se perder o costume.
Nos domingos, pobres vão ao culto. Intelectuais de esquerda vão ao Espaço Unibanco. Juntei-me ao meu rebanho. Gostei de "Linha de Passe".
Não vi no filme tanta correção política assim. Hoje em dia, parece que só se pode evitar esse defeito caindo no exagero inverso. "Linha de Passe" não é incorreto nem correto: é equilibrado, sem que esse equilíbrio pareça resultado de uma dosagem quimicamente produzida entre uma coisa e outra.
A faxineira pobre vivida por Sandra Corveloni pode sofrer um bocado com a indiferença e a pressa de sua patroa, mas não é apresentada como vítima da opressão burguesa.
Grávida de seu quinto filho, ela fuma sem parar.
Se lembrarmos da Fernanda Montenegro de "Central do Brasil", o papel de Sandra Corveloni em "Linha de Passe" dá mostras de muito mais contenção estética. Fernandona era reconhecível, simpatizável, emocionável, "chorável". Corveloni é seca, áspera, e sua personagem parece estar a contragosto no filme e na vida.
Os demais personagens de "Linha de Passe" também são tratados a uma nítida distância emocional.
Aquele garotinho bonzinho e perdido de "Central do Brasil" deu lugar a um pré-adolescente de péssimos bofes, e talvez até o mais generoso psicopedagogo da ONG Projeto Pivetinho o julgasse merecedor de alguns cascudos antes das primeiras aulas de violino e de cerâmica.
Quanto a seus irmãos mais velhos, todos se ressentem de muita adversidade e frustração, mas nunca o roteiro pretende convencer-nos de que são apenas vítimas de um sistema injusto.
Trata-se, sobretudo, de personagens duros, ou, se quisermos, endurecidos pelas circunstâncias. Gestos de carinho são raríssimos, a trilha sonora é das mais econômicas, a câmera não afaga nem lambe o rosto de ninguém.
Correção política? Os pobres de "Linha de Passe" não acendem as esperanças de nenhum coração de esquerda. De resto, xingam-se, maltratam-se, exibem preconceitos o tempo todo. Só de forma muito indireta é que seus sonhos apontam para alguma coisa como um ideal comum de salvação.
Um quer ser jogador de futebol; outro aposta na retidão da alma; o garoto quer ser chofer de ônibus.
Três imagens do "coletivo", do "comunitário", do "nacional". São, contudo, reinterpretadas num prisma individualista.
A torcida, em transe coletivo, importa menos do que o projeto de ascensão de um rapaz cujo principal defeito é ser "fominha" em campo. O comunitarismo cristão nada significa para outro personagem, fechado em sua pura e dura redenção individual. O ônibus que o menino quer conduzir está sem passageiros.
Estetização da pobreza? Tampouco vi qualquer coisa nesse sentido em "Linha de Passe". Qualquer continuidade coreográfica dos movimentos de câmera é substituída, aqui, por uma linguagem que privilegia o corte, a interrupção, a montagem. Recursos anti-sentimentais e "distanciadores" por excelência.
Mesmo os closes dos personagens dão a impressão de serem filmados a uma certa distância, de tal modo cada ator se recusa à cumplicidade sentimental com o público.
Desconfio que, se "Linha de Passe" desagrada, é pelas suas qualidades; ou por outros defeitos (certa monotonia, por exemplo) que, em todo caso, não são aqueles que eu esperava quando entrei na minha resignada fila dominical. Que assim seja, e que o filme seja louvado.

coelhofsp@uol.com.br

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