Entrevista especial com André Lemos
Que as novas tecnologias e os dispositivos criados a partir dela estão criando uma reconfiguração da sociedade não é uma nova informação. No entanto, pensar o que esse fenômeno está fazendo com a sociedade, de que forma essa reconfiguração está se dando é algo ainda que está sendo adaptado pelas grandes empresas midiáticas. Elas, que tinham o grande poder de informar, hoje precisam ceder espaço e aprender a trabalhar conjuntamente com esses dispositivos, porque perderam, junto com os formadores de opinião, o papel de mediação. Segundo o professor André Lemos, “o telefone celular, os laptops e os palmtops servem hoje como dispositivos de produção e distribuição da informação dentro do espaço urbano. Isso irá alterar os traçados das cidades, a forma como os arquitetos estão hoje construindo os prédios e criando zonas de acesso à informação nas redes”. A IHU On-Line conversou com ele por telefone sobre a sociedade transformada pela internet, pela web 2.0, pela comunicação digital.
André Lemos é engenheiro mecânico, pela Universidade Federal da Bahia. Obteve o título de mestre em Engenharia de Produção, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e em Sociologia, pela Université de Paris, onde também doutorou-se na mesma área. É pós-doutor pela Mcgill University e pela University of Alberta, as duas do Canadá. Atualmente, é professora da UFBA e tem como foco central em suas pesquisa o tema da cibercultura. É autor de Cultura das Redes. Ciberensaios para o século XXI (Salvador: Edufba, 2002) e Cibercultura. Tecnologia e vida social na cultura contemporânea (Porto Alegre: Sulina/Meridional, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A cultura está cada vez mais ligada às novas tecnologias. Como podemos pensar o espaço urbano contemporâneo a partir da cibercultura?
André Lemos – Na realidade, o que vemos é uma espécie de evolução dos processos de espacialização com as mídias. Todo o espaço urbano foi sempre transformado, alterado a partir das mídias, desde a escrita, depois passando pelo telégrafo, o rádio, telefone, televisão, até a internet. Então, o processo midiático está sempre alterando as práticas sociais nas cidades. O que nós temos hoje é uma evolução desse processo com as novas tecnologias, primeiro com a internet fixa – uma internet onde as pessoas se conectam a partir de lugares precisos – para chegarmos ao que temos disponíveis hoje, ou seja, um uso mais fluido e móvel com as tecnologias portais e digitais de acesso às redes sem fio, redes 3G ou Wi-fi etc. O que vemos hoje é, diferentemente dos meios de massa, uma relação que acopla a mobilidade física à mobilidade informacional.
Nós já tínhamos isso, de certa forma, com os meios de massa, quando podíamos levar um radinho de pilha, uma televisão portátil, ler jornais e revistas enquanto nos deslocamos, mas essa relação se dava meramente a partir de um consumo da informação. O usuário estava ali nos seus deslocamentos cotidianos em contato com a informação, mas com uma postura de consumidor desses meios de massa. A meu ver, a diferença hoje, passa, com esses dispositivos móveis, para uma possibilidade inédita, que é não só a de produzir informação, mas de circular essa informação em mobilidade. Há uma ampliação da potência da mobilidade total que se liga a um deslocamento maior pelo espaço urbano – pelos meios de transporte –, mas também uma ampliação da mobilidade informacional que passa a ser não só de consumo, mas principalmente de distribuição e de emissão dessa produção em vários formatos sonoro, imagético ou textual. Então o telefone celular, os laptops e os palmtops servem hoje como dispositivos de produção e distribuição da informação dentro do espaço urbano. Isso irá alterar os traçados das cidades, a forma como os arquitetos estão hoje construindo os prédios e criando zonas de acesso à informação nas redes, as micro e macro relações sociais – as pessoas coordenam seus deslocamentos com telefone celular, por exemplo.
Então, eu penso que faz parte de uma evolução desse processo de espacialização, chegando hoje a uma relação mais completa dessa mobilidade. Claro que, atualmente, essa mobilidade é potencial, porque ela está ligada à potencialidade que cada um tem de se deslocar, o que remete a diferenças sociais, à possibilidade de acesso a esses dispositivos e redes. É sempre, portanto, uma potência, não apenas do deslocamento físico, mas também do acesso à informação dessas redes, que estão sempre bloqueadas ou controladas por senhas de acesso, por pagamentos às operadoras, ou aos provedores etc. Então, nós temos uma potência aí, efetivamente muito maior de mobilidade física e emocional, mas não significa que estejamos necessariamente mais móveis ou nos comunicando maior. Há uma possibilidade maior de deslocamento físico e por informações.
IHU On-Line – Um fenômeno recente na cibercultura é a oportunidade de democracia de acessos, formando até uma economia da gratuidade e uma transposição da nossa vida para dentro da rede. Que mudanças essa economia do gratuito provoca no imaginário humano e na sociabilidade?
André Lemos – Acho que o exemplo maior dessa gratuidade, e isso não foi dito por mim, mas por Pedro Rezende, um dos maiores especialistas em software livre, é a própria internet. Ela é formada por protocolos abertos. O HTML, por exemplo, é um software de código aberto, que as pessoas podem alterar. Ou seja, os protocolos são livres e nós não precisamos pagar royalties para entrar na rede. Isso já é fato. A internet criou a possibilidade efetiva dessa produção de conteúdo livre, diferente dos meios de massa, que requeriam altos volumes de recursos, concessão do Estado, ser mantida por editores. O que nós temos hoje, a meu ver, é a possibilidade livre de conteúdo, de onde emerge a gratuidade. Esse é o maior fenômeno social da internet. O que estamos vendo é uma espécie de economia do dom, na qual as pessoas têm, pela primeira vez, a possibilidade de colocar o seu conteúdo. Claro que a gratuidade está sempre balizada pelo sistema capitalista, pois nós podemos usar sistemas de busca gratuito, mas eles estão ali sempre com a publicidade acoplada. É uma gratuidade relativa.
Há uma economia do dom, efetivamente, da colaboração, da possibilidade das pessoas poderem liberar uma emissão – ou seja, as pessoas podem publicar as suas coisas – em conexão e cooperação. Eu faço comentário nos blogs, posso alterar um software e trabalhar coletivamente com outras pessoas, além de poder publicar minhas idéias sem precisar passar por um centro editor etc. Agora, temos uma maior possibilidade de emissão da informação que se dá em colaboração, e essas duas pontas criam o processo de reconfiguração da cultura, do imaginário comunicacional e social. Não é o fim dos grandes meios de massa, porque o usuário quer esses dois sistemas, o aberto e o fechado. É muito bom para essa consciência planetária da informação que eu possa comprar um jornal na banca, ou assistir televisão, mas também possa adicionar outros elementos a partir do acesso à informação nos diversos sistemas que emerge a cada dia na internet.
IHU On-Line – De que forma a comunicação digital pode, a partir dessa economia da gratuidade, transformar o conceito de valor e de democracia?
André Lemos – A meu ver, o conceito de valor se transforma aí. Por exemplo, os bens simbólicos, na realidade, os softwares, são pagos porque é criado de alguma forma uma espécie de escassez artificial. Eu tenho um software e posso copiá-lo várias vezes, mantendo-se com a mesma qualidade. Então, ele não é um bem escasso e só é criada a partir dos contratos de uso. É criado, então, um mecanismo artificial de escassez. O software livre cria outro tipo de valor, que é o da cooperação de um processo que se dá com maior rapidez de atualização. O que, de alguma maneira, estamos vendo é uma redefinição do valor para algo que estava na economia da escassez e hoje passa a ser algo que apenas agrega valor. O valor que se dá a essa rede é a partir das conexões que se estabelecem de maneira gratuita.
IHU On-Line – A Web 2.0 permite também uma intercriatividade possibilitada pelas novas oportunidades para geração e distribuição de conhecimento. Podemos falar numa construção de um cérebro digital planetário?
André Lemos – Essa é a teoria do Pierre Lévy, da inteligência coletiva. Na verdade, eu sempre brinquei que nunca existiu inteligência individual, mas uma inteligência coletiva. Ela é construída a partir daquilo que nós lemos, ouvimos etc. Toda inteligência é, portanto, coletiva. O que eu acho, e aí concordo com o Levy, é que agora temos uma estrutura que potencializa isto, que faz com que a emissão só faça sentido se o meu conteúdo esteja conectado a outros, e só assim terá valor. Assim se cria uma maior conexão entre as pessoas, com trocas mais intensas entre elas, não apenas entre as que estão próximas, mas também entre aquelas que estão próximas pela possibilidade criada pela cibercultura. Temos aí uma potência de trabalhos cooperativos. É assim que teremos de evoluir.
IHU On-Line – A Web 2.0 permite que a circulação de informações pela internet possa ser ampliada, assim como permite também que os sujeitos que antes apenas recebiam as mensagens possam ser também produtores de notícias. Como o senhor analisa a questão da identidade das minorias que também se apropriam da rede e de suas possibilidades?
André Lemos – Não são todos os que podem falar nos meios de massa. As conversas se dão depois com os meus próximos e se revelam no processo democrático. À medida que com a internet qualquer pessoa se torna um potencial produtor de informações, é nesse espaço que as pessoas poderão expressar as suas opiniões sobre qualquer assunto e nos conectar a outros, gerando transformações e uma reconfiguração na sociedade. Não é à toa que países totalitários vão impedir justamente isso, que as pessoas falem e se juntem. Sempre que pudemos fazer coisas colaborativamente. Isso reconfigura a vida social, a arte, a cultura. O que nós temos hoje é uma possibilidade de as minorias se expressarem por elas mesmas, o que já está acontecendo ao redor do mundo, de uma maneira mais livre.
Passamos de uma cidadania restrita, local para algo de dimensão planetária. Por exemplo, os índios do Chiapas lá no México tiveram uma repercussão internacional da sua luta, porque o que eles falam não está restrito à sua comunidade local, mas solto no mundo. Isso reforça um aspecto muito positivo da globalização, que é a visibilidade do Planeta e de como as minorias se expressam e de como os totalitarismos atuam contra elas. Como vamos usar isso? Como isso vai evoluir para algo mais criativo, mais inteligente, é uma abertura para o futuro...
IHU On-Line – Hugo Pardo Kuklinski afirma que a web 2.0 não nasceu de forma espontânea, mas promoveu um espaço normativo de prescrição e imposição de valores. Há algo que pode ser perdido dentro da utopia tecnológica?
André Lemos – O problema da utopia é sempre colocar esperanças ou colocar a fé no dispositivo em si. Historicamente, nós temos feito isso. Não há uma causalidade que nós possamos colocar como unívoca nesse sistema. Por isso, a utopia é positiva, por um lado, pois está sempre nos colocando para além do nosso aqui e agora. Mas, por outro lado, temos de nos precaver em relação à idéia de que a simples disponibilização de redes, tecnologias, artefatos e dispositivos irá causar essa transformação. O perigo é acreditar que passamos a viver no melhor dos mundos, ou que estejamos nos comunicando melhor, ou mesmo criando uma espécie de planeta mais inteligente, cooperativo etc. Essa utopia existe desde sempre e 2/3 da população hoje vive fora das condições mínimas de existência. Então, o sonho moderno de que o progresso tecnológico-científico irá solucionar todos os nossos problemas não funciona mais. Toda essa utopia atual é voltada para isso hoje, pois todos esses dispositivos lançados nessa fase dizem isso: que vivemos num mundo sem fronteiras e viramos nômades. Por isso, o perigo está em dois aspectos: na crença linear no dispositivo e em achar que tudo isso não serve para nada e que está ligado ao mesmo sistema dos meios de massa.
IHU On-Line – Em sua opinião, como a nova geração da rede afeta a mídia?
André Lemos – Eu acho que a nova geração está afetando, primeiro, pelo viés do consumo. Hoje, o tempo que os jovens dedicam à internet é grande. Temos visto que o uso intensivo dos dispositivos tecnológicos cria uma crise de acesso aos meios massivos. Então, as grandes empresas de comunicação estão tendo de se adaptar a essa realidade e, assim, passam a utilizar esses recursos para ligar os dispositivos tecnológicos e suas possibilidades aos meios massivos.
Em segundo lugar, é a possibilidade que essa geração tem de produzir informação. Isso é bastante sedutor e faz parte da cultura da juventude, causando um problema entre a forma de produzir conteúdo e a forma de colaborar. O meio de massa tem sua importância, mas nos coloca algumas perguntas: “Quem sou eu para produzir informação? Quem sou eu para produzir um livro? Quem sou eu para fazer uma exposição de foto? Quem sou eu para aparecer na televisão?”. Hoje, temos possibilidade para fazer tudo isso inclusive e de uma maneira aberta. Então, a meu ver, os jovens utilizam muito esse meio por essa potência da emissão da informação. Há uma migração que abala a indústria cultural. A mediação não é mais dos intelectuais, dos jornalistas, da Igreja, dos militares, dos governos. Ela se dá entre os próprios usuários.
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