“Linha de Passe”: Crua Realidade



por Cloves Geraldo*

A dupla de diretores Walter Salles e Daniela Thomas entra na vida de família de trabalhadores da periferia de São Paulo para extrair lições de sobrevivência na megalópole.


Brasileiros Walter Salles e Daniela Thomas

Em grandes e belos planos, a dupla de diretores Walter Salles/Daniela Thomas, expõe em seu filme “Linha de Passe” vários meses do cotidiano de uma típica família da periferia paulistana. À frente dela está Cleusa (Sandra Corveloni), grávida, equilibrando o orçamento e a vida de seus quatro filhos homens, cada um deles tido com um parceiro diferente, o mais novo, Reginaldo (Kaíque de Jesus Santos), com um afro-descendente. Numa megalópole sombria, com poucas chances de um deles se erguer para além do asfalto, eles se viram como podem. Dênis (João Baldasserini), motoqueiro, faz entregas pela cidade, enquanto entra e sai da vida da ex-companheira, com quem tem um bebê; Dinho (José Geraldo Rodrigues), evangélico, frentista, encontra na religião uma forma de levar a existência adiante; e, por último, Dario (Vinícius de Oliveira), às voltas com o sonho de ser jogador profissional de futebol. Nada anormal num país onde o vôo para os trabalhadores está a poucos metros da linha do chão, ainda que a propaganda insista em trombetear que lhes basta exercer sua liberdade valendo-se da livre iniciativa.

Rodado em ambientes tomados pelo claro-escuro, que traduz duplamente o estado de espírito dos personagens e a ausência de perspectivas da cidade, “Linha de Passe” introduz em ações paralelas a vida dos quatro irmãos e a desventura da mãe, Sandra. Cada um deles indo contra situações que lhes dão poucas chances para verem o horizonte ao longe. Este poderia vir através do sol amplo e nítido, que expusesse os contornos dos prédios que dominam a paisagem urbana, mas está sempre tomado pelas sombras. Às vezes vêm-se apenas os contornos dos personagens movendo-se na escuridão, como espectros à procura da eternidade. Eles vão e vêem madrugada e noite-adentro, entrando, sentando-se à mesa, fazendo a magra refeição noturna e estirando-se em beliches e sofás. Quando não se refestelam na velha kombi, símbolo da vida que poderiam ter tido.

Dênis é cheio de ambigüidades

(“Terra Estrangeira”, “O Primeiro Dia”) não se perde em firulas, criando falsas expectativas para o público, com cenas que mostrem saídas fáceis, numa megalópole que mais engole seus filhos que os acaricia. Ao lançar uma olhada na vida de Dênis, o mais sorridente dos irmãos, o faz sem nuances. Ele é cheio de ambigüidades. Vive de expedientes, tem amigos mal situados e não se prende a nada. É o retrato mais acabado dos jovens da periferia. Tem filho, ex-mulher, e não vê adiante o que irá lhe tirar do aperto, da falta de dinheiro, da possibilidade de se relacionar com os irmãos sem lhes pedir ajuda. E, sobretudo, tem um emprego miserável, que o faz pôr a vida em perigo a cada instante. Os diretores não o tornam simpático, a empatia com ele vem mais das situações, da maneira como ele se comporta nas ações-limites.

É dele, também, uma das mais bem elaboradas cenas do filme, quando não se sabe se é ele ou seu parceiro que acabou debaixo de uma caminhonete. Há várias situações em ocorrência, em meio ao tráfego intenso, tensão em alta, e todas elas terminam num anticlímax. Nenhuma idealização de Dênis, ele está ali diante de sua vítima porque foi engolido pelas armadilhas engendradas por sua posição subalterna. Poder-se-ia falar em determinismo, mas ele é o único que busca saídas; mesmo que não sejam as mais louváveis. Não se ilude como o irmão Dinho, que busca a religião para exorcizar seus desencontros; tem única e exclusivamente a si e os amigos para continuar indo em frente em meio aos impasses do desemprego, da falta de dinheiro e da possibilidade de conviver com o filho bebê e a companheira que ainda o aceita.

Religião condena Dinho a uma falsa humildade

No outro extremo está Dinho, entregue à Igreja Evangélica, cujo pastor lamenta a evasão de fiéis e o magro dízimo contado no fim do culto. Ele é a própria lisura, lealdade e um contido comportamento, que o faz não externar o que sente. Quando o faz solta fel, maledicências, e solta a violência contida num ser ansioso para estar longe da vida miserável que leva. A religião que poderia ser um abrigo, o condiciona a uma falsa humildade, uma subserviência suspeita e uma honestidade premida pelas circunstâncias. Diferente do irmão Denis, que tenta mirar o horizonte na escuridão, ele só quer se entregar a Jesus. A crítica de Salles/Thomas não está na igreja evangélica em si, no pastor que tenta fazer milagre e fracassa; sim na incapacidade de a religião esvaziar o corpo do fiel, expulsando o demônio que ele trás dentro de si. Em suma, este demônio não lhe foi incutido ou se apossou dele; faz parte de si. E, sacrilégio, é capaz de entregar-se aos prazeres solitários da carne.

A cena que ele se atira furiosamente sobre o dono do posto onde trabalha, dá a exata noção do que se diz aqui. Atingido em seus brios, a fúria vem à tona e ele não se contém. Toda a hombridade, ética, moral, honestidade se desprende de seu corpo e ele é tão só um ser enfurecido. Uma bela cena que reflete menos a violência e mais a carga de ódio nele contido. Principalmente para quem se divide entre a casa, o trabalho e a igreja. Dele nada de ruim se espera; tampouco a mãe, sempre disposta a vê-lo como exemplo.

Está sempre o cercando de carinho, como se ele fosse um anjo. No entanto, ele, Dinho, mostra o que é, ao desnudar a vida da mãe, dizendo que seus parceiros acabam por deixá-la grávida, sem chance alguma de com eles conviver. É o suficiente para o espectador entender a natureza humana, por mais que possa mudá-la, criando suas próprias soluções. Mas a dupla Salles/Thomas não está interessada nestas saídas, tão só expõe o tipo de bicho que a megalópole cria.

Realidade mostrada pela dupla de diretores é de doer

Por fim, Dario, o mais centrado dos irmãos, com sua ambição de ser contratado por um grande clube. Vive as mesmas dilacerações de milhares de jovens, que sonham com contratos milionários, carrões, modelos e vida nababesca. A realidade mostrada por Salles/Thomas é de doer. Dario, como seus irmãos, está fora do processo de inclusão, seja social, seja cultural, seja humana (veja a maneira brusca como ele é dispensado da seleção de jovens jogadores pelo treinador). Definham. Com pequenos detalhes, como o da chuteira com a sola soltando, o olhar fixo no homem que poderia lhe dar uma chance, o andar pela via expressa solitário em plena madrugada, a dupla de diretores sintetizam o que o espera e a seus concorrentes. O futebol, longe dos gramados profissionais, é apenas o reflexo da luta de milhões de brasileiros por um futuro equilibrado (casa, comida, emprego, roupa e dinheiro para a cerveja). Dario quer tão só passar pela peneira que poderia levá-lo a um contrato, qualquer contrato. Feito por Vinícius de Oliveira com economia de expressões, gestos, fala sôfrega, Dario trás no rosto cheio de espinhas todas as impossibilidades.

A mesma impossibilidade que faz com que Reginaldo, o afro-descendente, filho caçula de Cleusa, ande a esmo à procura do pai. Garoto ainda, não tem as projeções dos irmãos, nem suas agruras cotidianas. Pode permanecer num vai-e-vem noturno, encantando com a viagem de ônibus e sofrer as conseqüências ao chegar em casa. Pouco se dá que está aí seu espaço, uma vez que nenhum dos irmãos se projeta nele. Ele é outsider, vive fora daquele ambiente sombrio, onde nada se move e o sonho é sempre adiado. Ao evadir-se, tem o mais belo momento do filme e, também, o mais emblemático, unindo o mágico e o real. Fantástica a seqüência em que ele atravessa o elevado dirigindo o ônibus; parece voar, mal tocando o asfalto. É desses momentos que faz um filme se torna mais que diversão. Fica-se com a sensação de que há magia e instante maior na vida. Os personagens estão ali para transfigurar a realidade, mas esta os agarra de tal forma que só uma cena como esta os liberta. Aparentemente os entrechos não se fecham, mas isto pouco importa. Inexiste intenção de fechá-los. A vida segue.

Cinema que busca cotidiano transcende as aparências

Somente este cinema que busca as oscilações do cotidiano é capaz de transcender as aparências. A vida que está diante do espectador é igual à sua, pelos desencontros e poucos achados – o diferente é o instante mágico provocado pelo personagem que usa o veículo símbolo da megalópole para ter um instante só seu. É o instante em que o cinema ergue-se do chão e chega a outro patamar: o da transcendência. É o que ganha o espectador. Se os irmãos de Reginaldo não conseguem romper com a realidade que os oprime, ele o faz. Bom que assim seja; “Linha de Passe”, preso demais à realidade, terminaria por impactar menos. Ainda que emocione, traga para o expectador as desventuras de uma família de trabalhadores, ele precisaria escapar a esta camisa de força. Suas matrizes, centradas no neo-realismo, têm mais de documentário, de abrir frestas na janela para que se possa olhar e ver muito da crueza da vida dentro de uma humilde casa.

“Linha de Passe”, enfim, segue a linha do Cinema Novo, entendido como aquele cinema que retrata as contradições da sociedade brasileira, expondo a dialética terceiro-mundista. Mas o filme da dupla Salles/Thomas não se quer como tal. A realidade hoje é outra, adversa ao caminhar célere do período pré-derrocada da ex-URSS. Seus entrechos sequer lamentam os impasses que bloqueiam a visão do que causa tais problemas à família de Cleusa. Principalmente quando ela vocifera contra a patroa, ao sentir-se ameaçada de perder o emprego, por estar prestes a ter o bebê, e Dinho se insurge contra o patrão quando este o acusa de ter facilitado um assalto. Talvez seja isto mesmo, hoje a classe operária, com o perfil que assumiu na era neoliberal-globalizante, esteja entregue a si mesma, só reagindo com fúria, quando se sente ameaçada. O que é muito pouco.

A família de Cleusa está, assim, entregue à sua própria sorte. Nem a religião a salva, pois está mais interessada em operar milagres que encham seus templos de fiéis e lhe permita arrecadar mais dízimos, que ordenar seu rebanho em direção à redenção. A dupla Salles/Thomas destituiu seu filme do messianismo caro, por exemplo, a Glauber Rocha, em “Deus e o Diabo da Terra do Sol”, não o enchendo de profetas. O pastor, com sua fala mansa, não tem grandes gestos, sermão eloqüente, apenas emite frases que possam enlevar os fiéis. E Dinho não o segue fielmente, tão só cumpre seu papel de servidor da igreja. Suas contradições não aplacam sua fúria, tampouco sua desconfiança em relação ao poder do milagre. Fica algo indefinido na relação fiel-igreja. Lacunas que o espectador terá de preencher, já que a dupla Salles/Thomas não lhes dá pista. Deixa em aberto os espaços, devendo ele, espectador, preenchê-los com sua visão do que acontecerá à família de Cleusa, entregue aos seus próprios impasses. Um exercício e tanto, porque as indagações são muitas e as respostas nem tanto, pelo que se vê em “Linha de Passe”.

“Linha de Passe”. Drama. Brasil. 2008. 108 minutos. Roteiro: Daniela Thomas, George Moura e colaboração de Bráulio Mantovani. Direção: Walter Salles e Daniela Thomas. Elenco: Sandra Corveloni, Vinícius Oliveira, João Baldasserini, José Geraldo Rodrigues, Kaíque de Jesus Santos.




*Cloves Geraldo, Jornalista

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