Arthur Bispo do Rosário : Missão divina


Centenário de Arthur Bispo do Rosário será comemorado com exposições, debates e filme. Flávio Bauraque vai interpretar o homem que recriou o mundo em sua cela de hospício
Sérgio Rodrigo Reis
Taime Gouvea/Divulgação
O ator Flávio Bauraque interpreta o homem que reinventou a arte dentro do manicômio

Para o sergipano Arthur Bispo do Rosário, a arte era desígnio divino. Ele acreditava que, enquanto vivesse, deveria miniaturizar o mundo para apresentá-lo no dia do juízo final. Fez disso a sua saga. Negro e pobre, foi considerado louco. Em 5 de janeiro de 1939, acabou recolhido ao pavilhão dos agitados da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Entre idas e vindas, passou os 50 anos seguintes no asilo psiquiátrico. Para sobreviver à decadência, aos choques elétricos e aos castigos na cela forte, onde era tratado a pão e água, jamais se assumiu como demente, mas como criador capaz de inventar algo singular. Este ano, quando se comemoram o centenário de nascimento e os 20 anos da morte do artista, filme, exposições e relançamento de livro celebram a obra deste mestre.

Ainda há muito a descobrir sobre o legado de Arthur Bispo do Rosário – referência das artes plásticas contemporâneas do Brasil. Nascido em 1909, em Japaratuba, ele deixou a terra natal para ingressar na escola de marinheiros em Aracaju, em 1925. Dispensado por problemas mentais, foi enviado ao Rio de Janeiro, onde sofreu grave acidente de trabalho. Seu advogado, Humberto Leoni, o contratou como uma espécie de faz-tudo da casa da família. Foi lá que Arthur teve a primeira crise. “Em 22 de dezembro de 1938, eu vim” – bordou ele numa jaqueta, para marcar a data inaugural de seu processo criativo incessante, cotidiano e diuturno.

Depois de passar um período internado no Hospital Pedro II, na Praia Vermelha, ele foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, onde criou objetos, estandartes, roupas, bandeiras e esculturas – boa parte com bordados. Começou o trabalho na cela, mas, pouco a pouco, ampliou-o para todo o pavilhão. O compromisso era um só: realizar o inventário poético do mundo.

O Museu Bispo do Rosário, instalado na extinta Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, se tornou depositário da saga de Arthur. A intenção da instituição é mostrar parte do acervo de cerca de 800 peças em exposições pelo Brasil, inclusive em Belo Horizonte. “O público verá o Bispo e o efeito que essa criação causou em artistas contemporâneos como Leonilson e Louise Bourgeois”, adianta Wilson Lázaro, curador do museu, um dos organizadores do tributo e autor do livro Arthur Bispo do Rosário. Com 303 páginas, a obra está esgotada, mas vai ganhar reedição este ano, acrescida de imagens do artista e de trabalhos inéditos.

Em outubro, mês do provável nascimento de Arthur, o museu promoverá uma semana de discussão com a presença de curadores e colecionadores de arte nacionais e estrangeiros. “Vamos apresentar a relação do Bispo no mundo. Ele está muito bem e, por isso, nossa instituição virou referência em arte contemporânea. A ideia é reservar a galeria principal para performances de dança, música e teatro, destacando a influência do trabalho dele em outras artes”, adianta Lázaro.

NO CINEMA
Alexandre Campbell/FI
ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO se proclamava Jesus. Sua obra era ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariedos, objetos mumificados, fardões da academia, miss Brasil, suspensórios de doutores -"coisas apropriadas ao abandono. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor. Esse Bispo do Rosário acreditava e em Deus." - Manoel de Barros, poeta
O filme O senhor do labirinto deve chegar às telas este ano. Não é biográfico, mas dá voz ao discurso de Bispo. “Vai mostrar como ele via a própria produção artística”, adianta o cineasta Geraldo Motta. A proposta surgiu do convite de Luciana Hidalgo, autora do livro Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto, em meados de 2002. “Reconstruímos o manicômio em Socorro, perto de Aracaju. A intenção é mostrar como ele desenvolveu arte absolutamente inovadora naquele momento”, explica o diretor. Sem qualquer estudo, Bispo realizou trabalho sintonizado com as questões plásticas da época em que viveu. “Enquanto artistas estabeleciam a ruptura com a tradição visual, ele criava algo semelhante, mas de maneira inusitada, isolado do mundo”, destaca Motta. O elenco reúne os atores Flávio Bauraque (Bispo), Maria Flor (a estagiária de psicologia pela qual o interno se apaixonou platonicamente) e 100 figurantes.

Flávio Bauraque se comoveu ao ver pela primeira vez a obra de seu personagem numa exposição em Manaus. “Chorei muito. Fiquei tão emocionado que as pessoas de lá acharam que eu era parente”, conta. O que mais chamou sua atenção foi a força das palavras bordadas nas obras. “Sempre quis entrar no universo das palavras e viver esse personagem negro tão específico. Difícil foi não cair no estereótipo. Aquele cara poderia ter embarcado na loucura, mas conseguiu transformar todo o seu universo em arte.”

O que mais encantou Bauraque foi a complexidade do ser humano. “Bispo não é bonzinho, nem mau. Mas uma pessoa com inteligência surpreendente.” Realmente se tratava de um louco?, pergunta-se o ator. “Quem é considerado louco segue um caminho particular, vai aonde quer. Nós é que estamos aprisionados em convenções”, pondera.

O curador Wilson Lázaro também põe em dúvida o diagnóstico. “Ele nunca tomou remédios. No fundo, surtou porque queria criar”, sugere. A batalha à frente do Museu do Bispo do Rosário inclui a tentativa de quebrar estereótipos sobre a loucura que perseguem o legado do artista. Tal preocupação interferiu no processo de elaboração do roteiro do filme. “Tivemos várias brigas no início, porque eles queriam uma imagem da loucura que não existiu. Há fantasia em torno disso”, afirma Lázaro.

Obra de Bispo inspira artistas contemporâneos
Para ele, a única explicação para a obra de Bispo é a vontade de fazer, de se expressar. “Seu relato permanece atual”, avisa o curador. A ideia é seduzir as novas gerações para a obra de Arthur Bispo do Rosário, apresentando-a em “conta-gotas”, em exposições temáticas, relacionando-a com o trabalho de outros artistas. “Se optássemos por uma retrospectiva permanente, perderíamos o frescor. As pessoas nos visitariam apenas uma única vez, pois estamos instalados longe do Centro do Rio”, explica.

Esse risco, definitivamente, Arthur Bispo do Rosário não corre. Em abril, a próxima mostra da programação relacionará o trabalho dele com a moda. Há algo mais atual?

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