Pare de existir


Edson Lopes Cardoso
edsoncardoso@irohin.org.br

Enquanto esperava o Elevador Lacerda, num dia quente de Salvador, em 1960, o escritor italiano Alberto Moravia reproduzia mentalmente a lição que aprendera com seus anfitriões, ilustres brasileiros: “...o problema racial no Brasil, ao contrário dos EUA, tem uma solução, mesmo que seja em longo prazo. Graças aos casamentos mistos, o Brasil espera que, devido à preponderância da população branca e à maior mortalidade dos negros, e por conta das misturas, a população de cor pare de existir, em outras palavras torne-se branca”.

Parece reprodução de texto de Paulo Prado, em “Retrato do Brasil”, concluído no final de 1927. É condição prévia a qualquer argumentação sobre o tema, desde tempos imemoriais, reafirmar a comparação com os Estados Unidos, o negro como um problema em si mesmo, seu desaparecimento. Os indicadores de mortalidade se justificam pela pobreza que, por sua vez, encontra explicação na escravidão.

Disseram também ao italiano que na Cidade Baixa, mais pobre, moravam os negros; e na Cidade Alta, próspera, moravam os brancos. Ele acreditou e, enquanto aguardava a chegada do elevador que o conduziria à parte alta, já não via negros a sua volta, só mulatos, tipos em transição, incompletos, tristes, resignados. O que lhe ocorreu de imediato foi que a espera do elevador simbolizava o momento que antecedia a elevação de status racial, o embranquecimento. Aqueles tipos incompletos “esperam tornarem-se brancos”.

No horizonte cultural e político, expresso sem disfarces para o visitante, o desaparecimento do negro. Os que sobrevivessem à penúria de suas condições materiais seriam diluídos na mistura. O negro deixaria de existir e os problemas desapareceriam. Penso que deveríamos buscar uma correspondência entre essas idéias e planos de governo. “A população de cor pare de existir” erigindo-se em modelo para os modos de governar a Cidade Alta e a Cidade Baixa. Como o modelo envolveu e formatou o conjunto das instituições, as estruturas de saber e poder.

Ao fazê-lo, devemos aprofundar nossos conhecimentos sobre políticas públicas, uma expressão quase vazia de conteúdo nos intervalos entre duas campanhas eleitorais. Os negros continuam sobrevivendo em condições precárias e não se deve dar como perdida a convicção na solução final do problema racial, a opção firme, cheia de crença no extermínio, que foi exposta a Moravia em 1960. Não acredite que essa gente impregnada de idéias racistas e acostumada a seus privilégios tenha realmente desaparecido.

Vejo um bom exemplo citado na coluna de Míriam Leitão (Bolsas & Famílias, O Globo, 31.01.2009), referindo-se a declarações do ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger:

“Foi criticado pelo ministro Mangabeira Unger [o Bolsa Família], com argumentos espantosos, preconceituosos e elitistas. Falando dias atrás ao repórter Bernardo Mello Franco, deste jornal, ele revelou que pensa que os pobres preferem ser pobres, teriam a cultura do “pobrismo” e que o programa deveria se concentrar nos “batalhadores”, aqueles que estão às portas da classe média: “O ponto nevrálgico é escolher corretamente o alvo. Muitas vezes tenta-se abordar o núcleo duro da pobreza com programas capacitadores, e aí não funciona. Populações mais miseráveis são cercadas por um conjunto de inibições, até de ordem cultural, que dificulta o êxito desses programas”, disse o ministro, que depois tentou dizer que foi mal interpretado.

Na visão do nosso ministro do sei-lá-o-quê, como o define Elio Gaspari, o governo deveria direcionar os recursos do Bolsa Família aos quase-classe média, os ‘pobres viáveis’. Faltou completar o raciocínio e dizer o que deve ser feito com os pobres e miseráveis brasileiros.”

A “Folha de S. Paulo”, que reproduziu os trechos das crônicas da visita de Alberto Moravia ao Brasil não julgou pertinente fazer comentários críticos (Caderno Mais, 25.01.09), reservando o material mais explicitamente racial para a Folha on line (www.folha.com.br/090215). Os grandes jornais, com regularidade impressionante, divulgam em seus suplementos ditos culturais relatos de viagem de europeus ao Brasil. Entende-se como classudo isso, um toque da mais alta distinção.

Voltando a Moravia: “Dissemos que a solução é fazer com que se tornem brancos. Mas é uma solução de verdade?” O escritor italiano parece não confiar cegamente no entusiasmo de seus hospedeiros. Mas não se preocupem, são variações de um espírito algo inquieto, mas cheio de compreensão e tolerância com os valores de sua patota. O ponto de partida da análise, que aproxima a todos, é a inviabilidade do negro. Há considerações sobre o efeito da escravidão no psiquismo negro (mais um problema do negro), e bobajadas e erros graves sobre a Igreja Católica, mas a preocupação central é como livrar o negro “de si mesmo”.

Em 1960, 72 anos após a abolição da escravidão, numa cidade de ostensiva maioria negra, o que vislumbramos através da escrita de Moravia é que os ilustres brasileiros que o recepcionavam não estavam interessados em disfarçar ou enfeitar seu ódio nem seus instintos desumanizadores em relação ao negro. Na fila do Elevador Lacerda, divagando sobre a elevação das raças inferiores, o “aspecto branco” que necessariamente deveriam assumir os sobreviventes, o escritor italiano estava afinadíssimo com as tradições sólidas da melhor intelectualidade brasileira. “E assim na cruza contínua de nossa vida, desde a época colonial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa aparência do ariano puro”. (Retrato do Brasil, p. 192. 8ª ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.)

Dedico esta Opinião a Gilberto Gil, o velho palhaço e mais novo cidadão ítalo-brasileiro (revista Veja, edição 2098, ano 42, nº 5, 4 de fevereiro de 2009, p. 86.). Aquele abraço.

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