O crime organizado no Brasil

Marcelo Cunha de Araújo
Promotor de Justiça, mestre e doutor em Direito, professor da PUC Minas
O fenômeno do crime organizado está sempre entre as conversas dos brasileiros. Uma constatação interessante disso, que pode ser comprovada em qualquer ocasião, consiste na perquirição a respeito de quem seriam as pessoas responsáveis pela criminalidade organizada no Brasil. Conveniente perceber que as manifestações produzidas a partir desse estímulo quase sempre tomarão o rumo de algo que gira em torno dos traficantes de drogas (servindo como estereótipo o bandido armado, dono das bocas-de-fumo das favelas do Rio de Janeiro), de grupos que agem de dentro das penitenciárias (como o PCC de São Paulo) ou de quadrilhas armadas especializadas em roubos a bancos e sequestros.

Muito poucas pessoas se lembram sem uma provocação direta, do verdadeiro crime organizado que serve como suporte a todas essas manifestações: o intrincado sistema de relações entre o aparato estatal, o capital e as atividades criminosas explícitas. O mais interessante de se apontar inicialmente é que, focalizando-se especificamente o imaginário coletivo em uma fenomenologia das aparências, tem-se que os culpados pelas mazelas da segurança pública brasileira seriam, então, o “traficante do morro”, “o presidiário” ou o “criminoso violento”. Torna-se importante, pois, buscar algo além da passividade (e impassividade) de nossos sentidos para embasarmos mais profundamente nossas opiniões.

Uma boa forma de se vislumbrar a ideia exposta pode ser verificada no excelente documentário Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund (1999), que retrata, a partir de diversos depoimentos, a construção pessoal dos envolvidos diretamente na questão das drogas: os policiais, os traficantes e os moradores das favelas do Rio de Janeiro. Em determinado momento da obra cinematográfica, o então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Hélio Luz, expõe uma verdade evidente apenas para um conhecedor interno: o fato, quase que manifesto, de os chamados “donos dos morros” não constituírem uma organização criminosa verdadeiramente operacional. Tal não significa que não possuam um mínimo de coordenação entre as atividades financeiras, de comércio, de proteção armada, de combate, de “apoio comunitário” etc. Entretanto, como disse o então delegado de Polícia, eles não têm conhecimento ou contatos suficientes para movimentar milhões de dólares ou participar do jogo de poder e dinheiro que caracteriza o relacionamento com as altas cúpulas do Estado constituído.

Isso, porém, não significa que não existam ligações entre o tráfico (e aí podemos acrescentar as máfias do bicho, dos caça-níqueis, dos bingos, da prostituição etc.) e o crime organizado. O que ocorre é que tal conexão não se dá nos morros (ou nos presídios), e sim em um nível hierárquico-organizacional acima. Para cada dono de boca-de-fumo existe alguém, certamente mais sofisticado e poderoso, que consegue financiar a atividade sem “sujar as mãos” com a violência da guerra na favela.

A partir desse raciocínio quase que evidente por si só, já se consegue ver o problema e o motivo de sua não-resolução: esse alguém mais sofisticado e poderoso tem íntimas ligações com o Estado institucionalizado e, com certeza, é pessoa que, de dentro do sistema, opera de forma a impossibilitar sua mudança. Trata-se do financiador oculto de campanhas eleitorais, do empreiteiro que misteriosamente vence licitações, do lobista que consegue verbas no orçamento, do intermediário que facilita a obtenção de sentenças em determinado sentido, entre outras atividades de sua alçada. Mas, apesar de o problema se caracterizar pela multiplicidade de ligações ocultas e protegidas pelo próprio sistema, todos os vínculos têm algo em comum na medida em que, em última instância, remontam à superestrutura econômica.

Desta feita, caso queiramos enfrentar seriamente o crime organizado brasileiro, teremos de pensar além dos jargões já desgastados do combate explícito e midiático consistentes em “ocupar favelas pela Polícia Militar”, “instalar bloqueadores de celular nas penitenciárias” ou “aumentar as penas dos crimes hediondos”. Um enfrentamento real e perene do problema exigiria a criação de um aparato material e legislativo institucionalizado de combate aos crimes do colarinho branco (como a lavagem de dinheiro, crimes tributários, fraudes à licitação, corrupção, peculato etc.) e à improbidade administrativa. Para tanto, não há mistério. Trata-se de uma escolha eminentemente política no sentido de se alargar e aprimorar o aparato preventivo e repressivo desses crimes. Da investigação à efetiva punição.

Essa escolha política é sectária em relação à nossa responsabilização por todos os fenômenos da dinâmica criminosa. Afinal, como se dizer (o óbvio) que o problema criminal do Brasil é relativo à falta de estrutura social disponibilizada aos menos favorecidos sem problematizar o fato de que, a cada R$ 100 retirados do caixa governamental, apenas R$1 chega efetivamente a seus destinatários? Como se permitir que corruptos de colarinho branco, muitas vezes funcionários públicos, escudem-se em direitos fundamentais para que não tenham de prestar contas à sociedade?

Nesse momento, chega-se ao âmago do problema. A triste constatação de que, para haver um efetivo combate ao crime organizado no Brasil, é necessária uma mudança premente nas estruturas do Estado, sendo certo ainda que os maiores interessados em que essa mudança não ocorra são justamente os detentores das rédeas da decisão. Assim, fica evidente que as ausências geradas pelos mortos da “guerra particular” travada entre as classes (pobres) dos policiais e dos traficantes têm alguns beneficiários em particular. Resta-nos perguntar se somos um deles.

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