Poucas formas literárias foram tão eficientes, enquanto autorreflexão sobre a existência de uma cultura, quanto a tragédia grega. Combinando elementos literários com elementos religiosos e coincidindo, basicamente, com o período em que floresceu a democracia ateniense, o gênero instituiu uma singular reflexão antropológica e política na história da literatura. Por trás dessa reflexão, destaca-se o tema da hybris, da desmedida: o homem e a comunidade em que vive têm uma medida correta, que representa a ordem do próprio cosmo. Quando o homem ultrapassa essa medida, comete um erro e pratica uma violência contra si e contra os deuses, que precisa ser corrigida pela intervenção do próprio destino.
Juntamente com as figuras de Sófocles e de Eurípides, Ésquilo, cronologicamente o primeiro dos três, destaca-se na história da tragédia grega, tendo sido, segundo muitos, o criador do gênero tal como se desenvolveu no século 5º a.C. Antes dele, a tragédia era representada por um grande coro, de 50 integrantes, e por apenas um ator-sacerdote, cujos monólogos se inseriam apenas nos interlúdios do enredo. Ésquilo reduziu o coro a 15 integrantes, introduziu um segundo personagem e modificou a natureza das intervenções do elenco, transformando-as em diálogos. Nascido em 525 ou 524 a.C. em Elêusis, próxima a Atenas, combateu contra os persas nas batalhas de Maratona e de Salamina e viveu no auge da democracia ateniense, tendo morrido em 456 a.C. Escreveu aproximadamente 90 peças, das quais apenas sete foram preservadas intactas até hoje. Entre seus dramas que chegaram até nós, destaca-se o Prometeu acorrentado (ou Prometeu prisioneiro).
A peça revela uma trama in media res, que se inicia antes da própria peça. Originalmente, na genealogia dos deuses, havia uma única deusa, Geia, a Terra, que gerou um filho, Uranos, o céu. Os dois deuses formavam, então, um primeiro par. Uranos, no entanto, cobria continuamente Geia, de modo que a deusa gerava filhos, mas não podia pari-los. Seu ventre inchava-se com os descendentes de Uranos, e ela, tomada de dores, forjou em seu interior uma lâmina, pedindo a um de seus filhos, Cronos, que a livrasse do sofrimento. Cronos, então, castrou o pai, que se afastou pelo resto da eternidade da esposa, que pôde, então, parir os filhos.
Do pênis amputado de Uranos, caíram sobre a Terra três gotas de sangue, que geraram as últimas filhas desse par: as Erínias, que exigiam que o sangue derramado de um parente fosse vingado. Por isso Cronos sabia que seu trono poderia ser ameaçado por um de seus descendentes. Para evitar esse destino, Cronos devorava os próprios filhos.
No entanto, a esposa de Cronos, Rea, tinha um estratagema. Quando nasceu seu último filho, ela tomou uma pedra, enrolou-a em um cueiro e entregou-a ao pai, que a devorou, pensando tratar-se de seu filho. A criança, Zeus, foi preservada fora do ventre do pai. Quando Zeus cresceu, ele retornou e deu ao pai uma droga, que levou Cronos a vomitar seus irmãos. Zeus reuniu, então, os próprios irmãos para empreenderem uma luta contra Cronos e os irmãos deste, os titãs. Ao vencerem a guerra contra os titãs, os filhos de Cronos reorganizaram o cosmos, e Zeus tornou-se o governante de todo o universo. Mas Zeus sabia que, assim como o avô e o pai assumiram o controle do universo por meio de violência, sendo por isso posteriormente destronados, ele seria em algum momento destronado por um de seus descendentes.
Zeus e os deuses olímpicos contaram com o apoio de um titã: Prometeu, que representa a astúcia e a previdência (seu nome deriva de pro, “antes de”, e methos, “saber, ver”). Mas Prometeu indignou-se com o modo como os homens eram tratados por Zeus, que retirou dos homens o fogo, sem o qual não poderiam viver. Prometeu, então, devolveu aos homens o fogo dos deuses, que representa o pensamento (nous), símbolo da civilização e das artes que Prometeu revela aos homens: a astronomia, a aritmética, as letras (que preservam a memória e possibilitam as outras artes), a pecuária, a navegação, a medicina, a mântica (a arte da adivinhação) e a metalurgia.
DEUSES E TITÃS É neste ponto que se inicia a peça. O deus Hefesto, juntamente com o Poder e a Violência, entra em cena, trazendo Prometeu à Cítia (região hoje ocupada pela Rússia). Prometeu praticou dois atos que desagradaram a Zeus. Em primeiro lugar, entregou o fogo sagrado aos homens; em segundo lugar, podendo prever os acontecimentos, recusou-se a revelar a Zeus qual divindade poderia destroná-lo no futuro. Por essa razão o titã seria acorrentado a um rochedo, consistindo nisso sua primeira punição por afrontar a vontade do rei dos deuses. Hefesto reluta em executar a pena, já que Prometeu também era um deus, mas, incitado por Força e por Violência, acaba por fazê-lo.
As Oceânides vêm lamentar o destino de Prometeu, lembrando-lhe que ele foi aliado de Zeus na luta contra os titãs. Prometeu revela que Zeus queria destruir a raça humana e criar outros seres, mas que ele, Prometeu, ajudou os homens a salvarem-se, dando-lhes o fogo. O próprio Oceano vem consolar Prometeu, aconselhando-o a curvar-se diante da vontade de Zeus, o que é recusado por Prometeu. Quando as Oceânides lhes perguntaram se tinha esperança de se libertar, ele lhes contou de uma possível queda de Zeus.
Entra em cena, então, outra vítima da tirania dos deuses, a mortal Io, amante de Zeus, transformada em uma vaca, fugindo de uma vespa (na verdade o cão de 100 olhos, Argos, encarregado por Hera de punir a mortal por seu relacionamento com Zeus). Prometeu prevê que um filho dela destronaria Zeus e que um filho de Zeus, Hércules, o libertaria.
Finalmente, entra em cena Hermes, lacaio de Zeus, exigindo que Prometeu lhe revele o nome do deus que o destronaria. Desdenhado por Prometeu, Hermes anuncia castigos ainda maiores: uma águia viria devorar seu fígado todo dia, que se regeneraria à noite para que fosse devorado no dia seguinte, e finalmente Prometeu seria tragado para o Hades, a mansão dos mortos. Quando Hermes aconselha as Oceânides a se afastarem de Prometeu, elas se recusam a fazê-lo, dizendo odiar a traição. Ocorre então um cataclismo, e Prometeu e as Oceânides são tragados para o Hades, terminando a tragédia.
O pano de fundo mitológico encobre a reflexão sobre a natureza do poder, em especial do poder tirânico. Na introdução de sua tradução da peça, Trajano Vieira lembra que nesta tragédia ocorre uma inversão notável: um titã, Prometeu, é apresentado como justo e sábio, enquanto Zeus é representado como violento (sendo a violência uma característica dos titãs).
COMUNIDADE POLÍTICA Para compreender a questão, precisamos partir de uma distinção. Havia dois tipos de monarcas na antiguidade grega. O primeiro, o basileus, era aquele que representava a normalidade, que ascendia ao trono pelo sangue, por descender da linhagem dos antigos reis. Mas havia também aquele que tomava o trono para si por meio da força, da violência, constituindo isso uma interrupção da ordem natural estabelecida no universo: o tyrannos. Aristóteles caracterizou a tirania como o governo despótico de um único homem que visa, não ao bem da comunidade política, mas ao próprio bem. Enquanto o rei (basileus) governa com base na tradição, e contando com a anuência daqueles que lhe estão submetidos, o tirano rompe com o passado e governa homens que lhe estão submetidos apenas pela força.
A característica mais relevante de Zeus em Prometeu acorrentado é que ele é descrito como um tirano, um “novo rei” que usurpa o poder pela força e pela violência e que acredita que pode impor sua vontade despoticamente a todos. O tirano rompe com a ordem estabelecida, ou melhor, funda uma nova ordem, baseada na violência e em sua vontade, como afirma o coro: “Senhores novos mandam lá no Olimpo;/ impondo novas leis Zeus já exerce/ poderes absolutos e destrói/ a majestade das antigas leis” (linhas 191 a 194, na tradução de Mário da Gama Kury). E nisso consiste a hybris de Zeus.
A pergunta decisiva de Prometeu é: quem concedeu tal poder a Zeus, senão sua própria vontade? Não sua razão, mas sua vontade, e vontade de dominar, de impor a própria vontade, é o início da tirania. Em toda tirania está contido um decisionismo, segundo o qual o fundamento do poder é a vontade, e não a justiça, ou mesmo a lei. Por isso Carl Schmitt, teórico do decisionismo, define como soberano não aquele que se pauta pela normalidade, mas aquele que decide sobre o estado de exceção. Em outros termos, soberano não é aquele que está autorizado, pela lei, a decidir, mas aquele que pode decidir, mesmo contra a lei. Como dizia Hobbes em O Leviatã, “auctoritas, non veritas, facit legem” (é a autoridade, e não a lei, que produz as leis).
Exatamente por isso, a ordem tirânica instaura uma desigualdade essencial, que pressupõe, por sua vez, que apenas o tirano é verdadeiramente livre. Igualdade e liberdade são suprimidas na tirania. Somente a vontade do tirano: este é lema da tirania, razão pela qual o tirano tenta eliminar a alternância no governo. E, no entanto, a alternância é o único fundamento do governo justo, porque substitui o governante singular pela ideia de governante, e, assim, por todos os homens, motivo por que já Aristóteles caracterizava a virtude democrática, oposta à tirania, como saber, ao mesmo tempo, governar e ser governado.
E, se o fundamento do poder é a vontade, também é a vontade que cria, na tirania, a distinção entre o bem e o mal. O relativismo é da própria natureza da tirania (prova disso é que Prometeu é mau aos olhos de Zeus e bom aos olhos mortais). Essa é, também, uma marca do decisionismo, a ponto de Schmitt dizer que as categorias estruturantes do político são amigo-inimigo, sendo inimigo tão simplesmente o outro, o diferente, independentemente de qualquer avaliação moral, de qualquer verdade.
Como é possível que, sendo tão avessa ao próprio homem, ao seu direito à liberdade e à igualdade, a tirania possa surgir e florescer? Essa pergunta levou o renascentista Etienne de la Boétie a escrever o Discurso da servidão voluntária. Apenas quando os homens desejam ser diferentes (ou se reconhecem como diferentes) pode ter início a servidão, razão pela qual ela é voluntária. Bastaria dizer que todos são iguais, para que a tirania deixasse de existir.
Dois personagens da peça representam esse “mal encontro”, para empregar a expressão de La Boétie, que é a servidão e que tem origem em duas causas: o desejo de servir, como no caso de Hermes, ou o medo, como no caso de Hefesto, são a origem da tirania. Hefesto executa a ordem de Zeus porque o teme. Pior que este, Hermes submete-se porque não conhece a liberdade e a igualdade. Para este, Prometeu declara: “Fica sabendo ainda: nunca eu trocaria/ minha desdita pela tua submissão./ Acho melhor ficar preso a este rochedo/ que me ver transformado em fiel mensageiro/ de Zeus, senhor dos deuses! Assim mostrarei/ aos orgulhosos quão vazio é seu orgulho!” (linhas 1.283 e ss.).
Marcelo Campos Galuppo é advogado e doutor em filosofia do direito pela UFMG. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas e professor da UNA. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário