Por Jair Silva*
Apesar de a princesa Isabel ter decretado oficialmente o fim da escravidão, em 1888, a Marinha brasileira, através da mentalidade racista de seus oficiais brancos, ainda continuava utilizando-se de práticas escravistas para punir os atos de indisciplina de seus marinheiros subalternos, em sua grande maioria negros e mulatos, com base no Decreto de nº 328, de 12 de abril de 1890.
Esse código disciplinar era extremamente desumano e responsável pelos maus-tratos, bem como pelas condições de trabalho aviltantes a que eram submetidos os marujos de baixa patente. Assim sendo, por seu intermédio, recomendava-se para faltas leves o uso da palmatória, prisão a ferros, a pão e água na solitária; e para faltas graves os marinheiros eram submetidos ao castigo de vinte e cinco chibatadas. Como se não bastasse todo esse sofrimento aplicado aos marujos, os praças que organizaram a Revolta da Chibata eram obrigados a conviver com a reduzida quantidade e a má qualidade de alimentos, além das temíveis chibatadas. Este castigo, vale ressaltar, era o que mais provocava revolta e indignação, como no caso do marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, que, pelo Código de Disciplina, deveria levar apenas 25 chibatadas, e, no entanto, o mesmo acabou levando 250 chibatadas, chegando a desmaiar, o que não impediu que o chibateiro do navio Minas Gerais continuasse a espancá-lo. É preciso não esquecer ainda que antes da Revolta da Chibata eclodir, em 22 de novembro de 1910, alguns marinheiros recebiam até 500 chibatadas num único dia!
Diante desse contexto, antes de ter sido escolhido para liderar a Revolta da Chibata, ao lado de Francisco Dias Martins, João Cândido já tinha tentado acabar com os castigos violentos na Marinha, através de uma audiência com o presidente da República, Nilo Peçanha. Mas não obteve êxito. Por que João Cândido, cognominado de ”o almirante negro”, lutou para humanizar as relações de trabalho na Marinha de Guerra? Em primeiro lugar, João Cândido aprendeu que o marinheiro merecia respeito e bom tratamento a partir de uma viagem que fez à Inglaterra, no ano de1908, para acompanhar o término da construção do navio de guerra Minas Gerais. Vale frisar que, na Inglaterra, entre os anos de 1903 e 1906, aconteceu um movimento de marinheiros ingleses para melhorar as condições de trabalho. Entre os praças que bombardearam o Rio de Janeiro, em 1910, então capital administrativa do Brasil, alguns sabiam falar inglês, e, em conversas com os marinheiros ingleses toda essa história de luta dos soldados ingleses deve ter chegado aos ouvidos de João Cândido, já que ele viveu dois anos na Inglaterra e também sabia falar inglês. A revolta do Encouraçado Potenkim(1) na Rússia, também influenciou as idéias do “almirante negro”. Em segundo lugar, a luta do “almirante negro” como a imprensa da época o chamava, não foi somente uma revolta contra o uso da chibata na Marinha. Na verdade, a luta do “mestre–sala dos mares”(2) vai além da abolição dos aviltantes castigos corporais, pois João Cândido deve ser visto e reconhecido pela sociedade brasileira e pelas futuras gerações como um sujeito que lutou para preservar a saúde dos marinheiros subalternos, uma vez que ele e os demais companheiros de luta não tinham o direito de ter folgas. Por isso que João Cândido combateu a exploração da força de trabalho e os excessos de serviços que violentavam a dignidade e a integridade física dos marujos de baixa patente, chamando a atenção do governo de Hermes da Fonseca, Congresso Nacional e da imprensa nacional e internacional para os maus-tratos e condições de trabalho degradantes.
Para se ter uma idéia do quanto os praças eram marginalizados, explorados e desrespeitados na Marinha de Guerra da época, basta apenas dizer que os marujos chegavam a trabalhar em turnos de até 36 horas, o que era inaceitável para o “almirante negro”, que teve a coragem de lutar para pôr fim a essas duras, desumanas e injustas relações de trabalho.
Além desses fatores que levaram João Cândido a lutar por melhores condições de trabalho, pode-se dizer que outra grande injustiça contribuiu de forma decisiva para a eclosão da Revolta da Chibata e envolvimento do ” almirante negro”. É que, com a chegada dos modernos navios de guerra da Inglaterra, as jornadas de trabalho aumentaram, provocando uma sobrecarga de trabalho que não veio acompanhada com a melhoria dos soldos. Enquanto que a oficialidade branca da Marinha comia bem e ganhava aumento com a modernização da frota de navios, João Cândido e os demais integrantes da Revolta da Chibata continuaram trabalhando muito, comendo comida estragada, sendo espancados e recebendo irrisória remuneração. Daí o imenso esforço humanizante de João Cândido para que o marinheiro subalterno tivesse uma política de remuneração digna.
Afora esses aspectos importantes quefazem parte da luta de João Cândido para humanizar a Marinha, pode-se dizer também que o “almirante negro” lutava para que os praças fossem educados pela Marinha, onde oitenta por cento de seus soldados eram negros e mulatos. Logo, podemos dizer que ele estava lutando contra a discriminação racial e, ao mesmo tempo, pelo crescimento intelectual e ascensão da raça negra na carreira militar, e de todos os seus companheiros de luta, visto que a Marinha recrutava os soldados subalternos nos extratos marginalizados da sociedade pós-abolicionista e não se preocupava com sua formação educacional, nem com o crescimento profissional. O próprio João Cândido, que era filho de ex-escravos não pôde ser sinaleiro porque era semi-analfabeto.
Portanto, diante do exposto, João Cândido deve ser visto pela história como um grande marco da resistência negra e uma referência de luta pelos direitos humanos, pois ele foi um corajoso líder trabalhista que lutou para democratizar e humanizar as relações de trabalho em 1910, tendo em vista que os marinheiros subalternos eram tratados de maneira desumana nas relações de trabalho. Por que os marinheiros subalternos recebiam comida estragada e enfrentavam espancamentos constantes? O “almirante negro” não queria ver seus companheiros de profissão sendo tratados como escravos no exercício de seu trabalho e tinha plena consciência desse fato. Não foi à toa que em um dos manifestos enviados ao governo de Hermes da Fonseca, os marinheiros e João Cândido reivindicaram “uma armada de cidadãos e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados”. Por isso que ele lutou para recuperar a condição humana perdida na Marinha onde vigorava horrendas práticas escravistas, assim como lutou para livrar os marinheiros dessas condições de trabalho humilhantes, pois o que o “almirante negro” desejava, em síntese, era ver o marinheiro subalterno com educação, cidadania e dignidade para exercer a sua profissão na Marinha de Guerra do Brasil.
Por conta de todas essas ações para humanizar as relações de trabalho, João Cândido pagou muito caro pelo seu gesto de pura bravura e ousadia, já que ele foi injustamente preso na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, onde conseguiu sobreviver à fome, à sede, ao calor e ao sufocamento numa cela subterrânea, na condição de preso incomunicável. Depois ainda foi internado como louco indigente no Hospital Nacional de Alienados, em abril de 1911. Ao sair do hospital, João Cândido, volta para o presídio na Ilha das Cobras e acaba sendo excluído dos quadros da Marinha, apesar de ter sido inocentado no processo militar que a Marinha movia contra ele.
À guisa de conclusão, podemos afirmar que, se o “almirante negro” através de sua luta conseguiu acabar com os violentos castigos físicos na Marinha de Guerra, cabe-nos, agora, lutarmos para destruir a mentalidade racista das elites que tentam apagar da memória do povo brasileiro a História de um marinheiro que virou símbolo de luta pela dignidade humana. Cabe, outrossim, a todos nós fazer de João Cândido um herói da Pátria e, por conseguinte, um eterno referencial de luta pela preservação dos direitos inalienáveis da humanidade.
(1)Movimento de marinheiros russos contra a má alimentação e os castigos físicos ocorrido em 1905.
(2)Mestre-sala-mares é o título de uma canção de João Bosco e Aldir Blanc que foi censurada pelo regime militar.
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