Berço do inferno


Em 400 contra 1 - Uma história do Comando Vermelho, Caco Souza desfaz mitos criados em torno da organização criminosa. Daniel de Oliveira e Daniela Escobar estrelam o longa
Gracie Santos
Marina Bottega/Divulgação
Uma "caiçara desglamourizada", na opinião do diretor, Daniela Escobar interpreta a namorada do bandido William da Silva Lima, autor do livro que deu origem ao filme
Quatrocentos contra um. A covardia é tanta, que parece ficção. O episódio é real e envolve o bandido Zé Bigode, que enfrentou sozinho o cerco de 400 policiais, durante mais de 12 horas, num morro do Rio. Do fato nasceu o nome do filme, que vai contar a história do Comando Vermelho, poderosa organização criminosa do país, criada no Instituto Penal Cândido Mendes, o Presídio da Ilha Grande, no auge da ditadura militar. No comando, William da Silva Lima, não por acaso amigo de Zé Bigode e que teria sido obrigado pela polícia a assistir ao cerco. A explosiva fórmula presos políticos presos comuns, na Galeria B de Ilha Grande, a partir de 1974, criou, por um lado, uma relação de respeito e admiração dos presos comuns com a disciplina, organização e companheirismo dos revolucionários de esquerda. E, por outro, culminou em clima de tensão crescente até detonar uma tragédia, que agora será contada no cinema.

400 contra 1 – Uma história do Comando Vermelho começou a ser rodado em 25 de janeiro. Terá locações em Curitiba (na Prisão Provisória do Ahú, desativada desde 2006, onde a equipe está esta semana), na Ilha Grande e no Rio. A previsão de estreia do filme é para o fim do ano. O diretor Caco Souza tem experiência em obras publicitárias e documentários. Entre eles, Senhora liberdade, com o próprio William da Silva Lima, “curta que foi um balão-de-ensaio, pois pude colocar em imagens as conversas que tinha com ele desde Bangu 3, quando começamos a travar contato”, conta o cineasta, que, interessado pelo tema, em 2002 deparou-se com a autobiografia de William da Silva Lima.

“Percebi que o filme estava ali. Era o relato de um preso comum (assaltante de bancos), que durante a ditadura foi condenado pela Lei de Segurança Nacional, o que fez com que cumprisse pena junto a presos políticos no Presídio Cândido Mendes. Essa convivência entre presos políticos e comuns foi muito controversa e espetacularizada. A imprensa da época passou a relacionar o nascimento do Comando Vermelho, então denominado Falange Vermelha, com as táticas de guerrilha que teriam sido ensinadas a eles pelos presos políticos”, explica Caco Souza, que garante: “Não foi bem assim”. A pesquisa realizada para o longa (pela historiadora Ana Carolina de M. D. Maciel) lhe deu subsídios para que, “no primeiro ‘ação’, tivesse a certeza do enredo a ser contado”.

Ana Carolina de M. D. Maciel/Divulgação
Fabrício Bolivera e Daniel de Oliveira, no papel do criador do Comando Vermelho

ESCOLA

Caco Souza lembra que os presos da lei (como se autodenominavam) observaram atentamente a organização dos presos políticos. E passaram a adotar práticas de solidariedade entre eles, “o que gerou a conscientização do coletivo e de que juntos seriam mais fortes para resistir aos desmandos do sistema prisional durante a ditadura militar (torturas, péssimas condições, falta de acesso a tratamentos médicos, ausência de oficinas de trabalho etc.)”. Os presos políticos organizaram uma escola dentro do presídio e emprestavam livros aos presos comuns. Mas Caco Souza salienta que isso não significa que eles tenham ensinado os presos a assaltar. “Acredito que o maior saldo dessa convivência foi a noção de que, organizados, os presos comuns poderiam conquistar reivindicações que, isoladamente, não conseguiriam”.

O diretor de 400 contra 1 afirma que essa organização entre os presos comuns, iniciada nos anos 1970 como forma de resistência, “é hoje um dos maiores expoentes do crime organizado”. E contabiliza: “Para que o atual Comando Vermelho se tornasse o que é hoje foram quatro décadas de exclusão econômica e social e um crescente consumo das drogas. Não temos apenas culpados e inocentes nesse percurso.” A proposta do filme é gerar reflexão sobre a gênese do Comando Vermelho em outra vertente, “não maniqueísta e não imediatista. A escravidão foi abolida, mas gerou imensa massa de excluídos. Nos morros cariocas, a maioria da população é negra. Isso é por acaso? Por que um jovem habitante do morro ou favela não deve admirar e se pautar pelo comportamento dos chefões do tráfico? Que outra perspectiva ele teria? Como entender o grave problema do crime organizado no Brasil sem conhecer as suas origens?”

MATURIDADE A trama tem o ator Daniel de Oliveira (A festa menina morta) como William da Silva Lima, o principal articulador do movimento. “Daniel incorporou com muita maturidade o personagem. Tem densidade para isso e está desempenhando com maestria essa empreitada. É um grande privilégio contar com ele”, diz o diretor. Daniela Escobar (Vida de menina) é a namorada de William, Tereza, “caiçara desglamourizada e oportunista, que não mede esforços para alcançar seus objetivos. Ela assumiu com muita seriedade esse papel e o resultado está sendo fantástico”, assegura Caco Souza, estendendo elogios ao elenco: Branca Messina, Fabricio Boliveira, Lui Mendes, Jefferson Brasil, Jonathan Azevedo. “Os demais também se entregaram de corpo e alma! Equipe e o elenco compuseram grupo coeso, inspirado no próprio conceito do filme: coletivo”, assegura.

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