Limites da responsabilidade civil no mundo virtual

O mundo virtual é campo fértil para a prática dos mais variados ilícitos. As dificuldades surgem a partir do fato verificado de que muitas vezes o ofensor se mantém no anonimato. Em outras situações, a responsabilidade surge pelo mau uso das novas ferramentas virtuais
Flávia de Almeida Viveiros de Castro, juíza de Direito no Rio de Janeiro, doutora pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e mestre pela PUC - Rio, autora dos livros Interpretação constitucional e prestação jurisdicional e Poder Judiciário na virada do século
A internet, esse admirável mundo novo inaugurado como um projeto de comunicação de bases militares nos EUA na década de 60, e rapidamente desenvolvido e expandido para todas as demais nações na forma de uma poderosa rede de informações, utilizada para o bem e para o mal, surge para o universo do direito, muitas vezes vinculada a questões de responsabilidade civil. Isso faz com que o Judiciário brasileiro analise situações que há pouco mais de uma década não seriam sequer imaginadas.

Quinho
Do ponto de vista jurídico, essa realidade faz com que magistrados e demais atores dos processos que envolvem questões ligadas ao mundo virtual estejam ainda construindo suas interpretações, consolidando cautelosamente seus entendimentos, burilando seus argumentos, inaugurando uma nova forma de litigar e julgar sobre a fenomenologia dos fatos virtuais.

No rico campo da responsabilidade civil, a situação se delineia complexa. Constata-se que o mundo virtual é campo fértil para a prática dos mais variados ilícitos. As dificuldades surgem a partir do fato verificado de que muitas vezes o ofensor se mantém no anonimato. Em outras situações, a responsabilidade surge pelo mau uso das novas ferramentas virtuais. Para citar apenas os injustos mais comuns nas lides forenses: velocidades distintas das contratadas em serviços de conexão à internet, cancelamento de ofertas de vendas virtuais por falhas sistêmicas, uso indevido de software alheio, fraudes em acessos eletrônicos aos serviços bancários.

Em consequência, quer da falta de identificação do usuário da web, quer da massificação das relações construídas na rede, quer da exploração econômica e lucrativa deste espaço de relacionamento interpessoal, observa-se a tendência em tornar sempre objetiva a responsabilidade em casos onde o ilícito é praticado no ambiente virtual, sendo conferido a esse, tratamento mais severo que o dos injustos ocorridos em meio físico.

Em mais de uma decisão, de tribunais de Justiça distintos, percebe-se que se exige das empresas que prestam serviços na e para a rede mundial de computadores maior diligência, cuidado e transparência.

Citem-se dois exemplos. Na apelação cível 70024308199, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, uma operadora de telefonia celular foi responsabilizada por danos morais causados por torpedos ofensivos recebidos pela cliente. A defesa da empresa menciona que o ofensor fora terceiro, que acessou o serviço de forma ilícita, não podendo ser identificado, vez que a empresa não mantém cadastro dos usuários do serviço torpedo por web.

Em seu voto, o desembargador relator, Jorge Luiz Lopes do Canto, afirmou que a conduta da empresa fora temerária, abusiva e ilícita, com potencial de risco elevado, já que não exigia a identificação do usuário do serviço, propiciando maiores chances de que esse fosse utilizado de forma indevida. As bases legais da condenação foram os artigos 186 e 927, ambos do Código Civil.

Por sua vez, na apelação cível 2008.001.18270 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, foi imputada responsabilidade civil objetiva à empresa responsável por um site, em função de comentários ofensivos publicados em página de relacionamentos. A empresa se defendeu afirmando que não teria controle sobre as assertivas expostas no site, idealizado para aproximar pessoas, e que não teria tido qualquer culpa no incidente. Já o acórdão fundamenta a decisão condenatória no risco assumido pela empresa, ao permitir a veiculação, sem qualquer controle, no site de relacionamento, de comentários injuriosos, utilizando como base legal da condenação o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, que consigna haver obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos referidos em lei, ou quando a atividade desenvolvida, por sua natureza, implicar risco para os direitos de outrem.

Estes julgamentos apontam, como referido, uma tendência dos tribunais para que as empresas que exploram de uma forma ou de outra o meio virtual tenham maior cautela no desenvolvimento de suas atividades, visto que, havendo dano, serão responsabilizadas, mesmo se não forem as autoras intelectuais do ilícito.

O anonimato que a internet favorece pode ser, inclusive, o ponto fulcral para atrair tal responsabilidade civil objetiva, muito embora se saiba que as provedoras de acesso e hospedeiras de sites possam identificar, por meio de um endereço IP (Internet Protocol), quem foi o usuário da rede que a utilizou na prática de um ilícito. Ocorre que isso nem sempre é desejável pelas empresas, visto que o controle sobre seus usuários, a par de ter um custo significativo, afasta a idéia de liberdade que compõe o espírito da internet.

É cedo para prognosticar o desdobramento das relações na web e seus efeitos jurídicos. Sabe-se, contudo, e é desejável que assim seja, que os deveres de cuidado, cautela e diligência serão cobrados com rigor cada vez maior. A tecnologia, conclui-se, deve ser usada a favor e não contra a dignidade do homem.

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