por Edson França*
Apesar do momento sombrio que se avizinhava à ciência polítcia, Marx e Engels não avançaram os limites colocados em seu tempo histórico, para eles a questão étnica e racial não se impôs claramente. Outros importantes teóricos marxistas não desenvolveram reflexões sobre esse tema, isso explica as lacunas teóricas e alguns erros políticos do movimento comunista. Ainda assim, o marxismo é o melhor método científico tanto para entender como para combater o racismo.
Ciente do limite teórico ora explicitado, as correntes liberais e pós-modernas, algumas se auto-intitulam pós-marxistas, como mais um meio de propagar o fim do marxismo e a consolidação de um novo tempo histórico, desenvolve reflexões nefastas ao desenvolvimento do socialismo. Acusam o marxismo de ter fracassado na resolução das contradições relacionadas à raça, gênero e etnia existentes no interior das classes; argumentam que as experiências do socialismo no leste europeu foi um fiasco, sufocou as nacionalidades, essas só expressaram suas aspirações e singularidades com plena liberdade após a “democratização” da região. Advogam que a ênfase marxista nas classes sociais é reducionista, pois as classes estão dissolvendo. A política contemporânea responde a impulsos enraizados em identidades diversas (raça, gênero, etnia, nacionalidade, orientação sexual, etc.), cujos interesses políticos não se esgotam nos limites dado pelas divisões de classes.
Hipocritamente omitem que o racismo está enraizado, desde sua gênese, em base econômica, sempre serviu a interesses sociais, econômicos e políticos de Estados e das classes dominantes, por isso imbrica-se na luta de classes, na luta contra o colonialismo e contra o imperialismo. Segundo Libero Della Piana, presidente do Partido Comunista dos Estados Unidos, “o racismo em nosso país é a maior ferramenta do capitalismo, ferramenta número um para dividir os trabalhadores. O racismo faz os capitalistas mais ricos” .
Essa mesma corrente não esconde sua verdadeira intenção quando apregoa a minimização do Estado e plena liberdade aos mercados; associam as experiências socialistas com autoritarismo e corrupção; propõe a solidariedade entre as classes, fim do antiiperialismo e fortalecimento do conceito de interdependência entre ricos e pobres. Resumidamente estão na contramão do anti-racismo, pois propõe uma agenda conservadora que deve ser combatida, porque beneficia exclusivamente a burguesia internacional e os Estados nacionais ricos.
As manifestações culturais subjacentes no racismo - estereotipo negativo e preconceito - sobrevivem as mudanças estruturais econômicas e políticas. Para construção do socialismo haverá necessidade de um longo período de transição após a classe operária ascender ao poder político, ou seja, a mudança estrutural deverá ser processual. Quanto a superestrutura o processo é idêntico, mudando a estrutura material a sociedade processualmente se divorciará das idéias dominantes anterior. O racismo não putrefará na inércia, haverá necessidade de atuar sobre ele, reeducar o povo contra os resquícios culturais e psicológicos oriundos do racismo. Por essa razão a luta contra o racismo é compatível e deve organizar-se em concomitância e unidade com a luta do proletariado para tomada do poder político e construção do socialismo. O que exige dos comunistas, em especial dos brasileiros pelo histórico de miscigenação e multiculturalidade do país, protagonismo na formulação de ferramentas teóricas e políticas, sempre sintonizadas a nossa experiência histórica, assim erradicaremos o atraso do racismo no Brasil.
Conceito de raça e etnia
No marxismo, raças / etnia são elementos irrelevantes para explicar as diferenças políticas, grupos homogêneos competem por recurso comum disponíveis, para isso lutam politicamente entre si. No entanto, em certos contextos políticos, a percepção de equivalências sócio-econômicas contribui na formação vínculos políticos para atuação na luta de classe, fenômeno invariavelmente confundido com lutas raciais – a grande rebelião da comunidade negra em Los Angeles em 1992 e o levante nos subúrbios de Paris em 2007 são exemplos da luta de classe subjacente em conflitos raciais. “Os diferentes grupos étnicos são colocados em relações de cooperação, simbiose ou conflito, pelo fato de que como grupos têm diferentes funções econômicas e políticas” .
O conceito de raça é inoperante para explicar a variabilidade humana, não tem amparo na ciência biológica. A sociedade humana é uma espécie que não subdivide em raças ou sub-raças diferentes, “mas em seis bilhões de indivíduos genomicamente diferentes entre si, mas com graus maiores ou menores de parentesco em suas variadas linhagens genealógicas. (...) Em outras palavras, pode ser fácil distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou asiático, mas tal facilidade desaparece por completo quando se procuram evidências dessas diferenças ´raciais’ no genoma das pessoas” . Raça não é uma realidade biológica, é uma construção sócio-política, carregada de ideologia, como tal, não proclama seu verdadeiro sentido: relação de poder e dominação .
Na forma “científica” o conceito foi elaborado e desenvolvido pelas elites burguesas européias em finais do século 18 e 19, com objetivo de legitimar filosoficamente dominação e sujeição política e econômica entre classes sociais, através da colonização, escravidão, discriminação, diversas formas de exploração e atrocidades. A elaboração anterior proposta pela Igreja não se sustentava racionalmente, o racismo científico foi uma chave fundamental para as mudanças estruturais impostas pela burguesia - classe social que acabara de assumir definitivamente o poder político – e para o desenvolvimento do capitalismo enquanto modo de produção globalmente dominante.
A partir do século 16, época das grandes navegações, colonização da América, fase inicial do encontro e trocas comerciais entre os povos europeus, africanos e asiáticos, as populações negras, em todo planeta, vivem com acúmulos de desvantagens provocadas pela violência, saques e exploração insana da sua mão de obra. No imaginário do senso comum negro é sinônimo de pobre e marginal, os negros compartilham histórico de discriminação negativa e subalternidade. Esse lugar social secularmente imposto, teórica e filosoficamente sustentado determinou identidades comuns, racializou a humanidade.
Desde finais da segunda guerra mundial as teorias racistas baseadas em pseudos ciências foram rejeitadas pela comunidade cientifica internacional, ainda assim, se mantêm a desigualdade herdada do racismo científico e do histórico de exploração direcionada as populações não brancas. Provando que o racismo, na atualidade, não necessita de uma teoria para legitimá-lo nem da proclamação científica de existência das raças, o pensamento coletivo a convencionou, há forças políticas e econômicas lucrando com sua vitalidade, será necessário tempo para que sua sustentação mental seja aniquilada e luta política para sua superação. As variedades fenotípicas entre os seres humanos são empiricamente incontestáveis, não se confunde visualmente um esquimó da Groenlândia com um aborígine australiano, por isso a noção social de raça dispensa critérios genótipos, é na “raça biologicamente fictícia” que se assenta a classificação hierárquica, se assentam os estereótipos e o racismo sobrevive vigorosamente.
Etnia é um conceito de caráter sócio-cultural, histórico, psicológico, lingüístico e de identidade, está em constante desenvolvimento, tem se fortalecido na mesma medida da inviabilidade científica das raças. Se para a ciência a hierarquização biológica é uma fraude, então se substitui pela cultura, assim mantem a respeitabilidade teórica da desigualdade produzida pelo racismo e legitima a dominação política anterior. As identidades étnicas tomam lugar das raças, prendendo as populações representantes das culturas “menos desenvolvidas”, “atrasadas” e “primitivas” nas franjas da sociedade moderna. Marx nos alertou ao peso negativo para luta emancipacionista do proletariado a inobservância da opressão direcionada a setores ou camadas dos trabalhadores e o quanto a opressão etnorracial divide a luta e beneficia os algozes:
“Cada centro industrial e comercial na Inglaterra possui uma classe trabalhadora dividida em dois campos hostis, proletários ingleses e proletários irlandeses. O trabalhador inglês comum odeia o trabalhador irlandês como um competidor que rebaixa seu padrão de vida. Em relação ao trabalhador irlandês ele se sente um membro da nação dominante, e assim torna-se num instrumento dos aristocratas e capitalista de seu país contra a Irlanda, fortalecendo a sua dominação sobre ele próprio. Ele aprecia os preconceitos sociais, religiosos e nacionais contra os trabalhadores irlandeses. A sua atitude é muito parecida a dos ‘brancos pobres’ em relação aos negros nos antigos estados escravagistas dos EUA. O irlandês lhe paga com juros na mesma moeda. Ele vê no trabalhador inglês ao mesmo tempo o cúmplice e o instrumento estúpido do domínio inglês na Irlanda.”
Nessas palavras de Marx são possíveis duas deduções, uma que o racismo e a discriminação estabelecem desvantagem material a segmentos étnicos, raciais ou nacionais no interior do proletariado, divide a classe e fortalece a burguesia. Outra que a parcela dos trabalhadores que não recebe o impacto direto do racismo e da discriminação se sente psicologicamente superior, esse sentimento conforta a angústia da miséria em que se encontra, arrefecida pela facilidade em despejar-la sobre seu bode expiatório: o discriminado. A mensagem racista seduz parcela dos trabalhadores, pois está implícita uma promessa de solução imaginária ao problema real, como a pobreza, desemprego, exploração, que os defronta cotidianamente. Segundo Alcir Lenharo o nazismo triunfou na Alemanha porque “... a ideologia racista oficial era de fato acatada e subassumida, e servia de ponto norteador da conduta individual e coletiva da população.” Silenciar e subestimar o racismo enquanto uma proposta política social reacionária para benefício de uma minoria, equivale a apoiar tacitamente a própria dominação. Por isso combate-lo é uma tarefa revolucionária, cabe ao proletariado e seu Partido, a quem está dada a tarefa da transformação social, ações com objetivo de desarticular, enfraquecer e superar o racismo.
Os comunistas e a compreensão do povo brasileiro
Os comunistas reconhecem a existência do racismo e da desigualdade racial no Brasil, compreendem que dispomos de condições e instrumentos positivos para melhor combate-lo. Somos um povo uno, unidade formada pelo encontro assimétrico e miscigenação de três povos: os colonizadores portugueses, os índios nativos da terra e os africanos utilizados como mão de obra escrava. Unidade forjada na luta popular contra a opressão imperialista e das elites locais. Não há em todo território nacionalidades em conflitos, movimentos ou forças separatistas conseqüentes, etnias reivindicando território e autodeterminação. Somos um povo profundamente miscigenado - compreendendo miscigenação não apenas como intercurso sexual para procriação, mas encontro de valores humanísticos que envolvem religião, mitos de criação, culturas, folclores, etc. -, falamos apenas um idioma, enquanto povo-nação, o povo brasileiro é um todo indivisível.
A compreensão da existência de um povo uno no Brasil, não ignora e nem subtrai da unidade contradições de diversas dimensões que devem ser tratadas: gênero, etnia/ raça, desigualdades regionais, dentre outras. Encontramos-nos entre as sociedades mais desiguais do planeta; convivemos com índices alarmantes de violência, onde a juventude negra é o principal alvo; temos uma classe média racista e conservadora, tenaz atuante contra os avanços sociais propostos; a elite mais mesquinha, gananciosa e antipatriota do mundo. Estamos diante de uma unidade doente, sob suspeita, em situação de risco, inconclusa, mas, contraditoriamente em processo de aperfeiçoamento. Daí a importância das forças progressistas ocuparem os governos para aprofundarem a mudança, dando prioridade na universalização da intervenção do Estado junto a população, sem prejuízo do olhar atento sobre as especificidades. A manutenção das contradições no interior do povo favorece a desagregação da sociedade e dificulta o processo de construção – ainda em curso – da Nação brasileira.
*Edson França, É Coordenador Geral da Unegro, membro do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e da coordenação da Conen-Coordenação Nacional de Entidades Negra
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